Vira Bicho. Divagações
Eduarda Chiote
Vira Bicho é um delírio sobre a sátira da escrita, amealhando em cada divagação as contradições de uma sociedade abusadora e despudorada, numa repulsa face à subserviência, uma revolta contra a alienação, um nojo face a qualquer tipo de purificação. Num bairro sub-urbano, onde a própria narradora-autora-e-alter-ego residiu, surgem personagens rasteiras, ardilosas e torpes que se cruzam com memórias da infância e episódios-chave da maturidade. Um livro onde não é fácil entrar e de onde se sai em estado de tensão. A autora não deixa de nos avisar: «Foi sempre o que a escrita quis de mim: brincar aos crimes e ao riso dos amores atraiçoados.»
Excerto
O QUE ACONTECEU DURANTE “O ÁRDUO CAMINHO QUE CONDUZ DO INFERNO À LUZ”
Batem à porta. Com os nós dos dedos. – Estará avariada a campainha? Levanto-me e espreito pelo círculo microscópico o olho da Bia. Petrificado, gelado. Através da lente minúscula. Afasta-se, mas eu reconheço-a pelas três cabeças, pelos cabelos, por um cabelo único – um só fio branco numa espuma negra: caótica e exasperada aproxima-se de novo e o olho surge dilatado: um abutre no visor. E a cabeça de um só cabelo, por sinal branco, de gelo, de um fio infernal, gelado, sai de cena sem dimensão ética ou metafísica para ceder lugar à voz que não pede, exige: abra!, por favor, abra!; e agora, aberta a porta, ela, Bia,
em frente /diante de mim
diz como se nada tivera acontecido durante as trevas de um dia anterior ao da criação das pombas, que não apenas ao das fundas águas de onde se redime o dilúvio (que se abateram sobre a criatividade impiedosa deste livro em virtude de uma bactéria nelas infiltrada, de certeza maligna pois desapareceu das páginas e as deixando vazias de vida) diz: calcule quanto tenho de luz, cento e oitenta euros. Não incomodaria se a situação não fosse tão desesperada. Mas desta vez estou mesmo a caminho de ficar encurralada. – Vai voltar a fugir? – pergunto. Não fugi: andei por aí, na selva no caminho; mas não lhe telefonei porque não queria preocupá-la.
Nota de leitura

