Uso Errado da Vida
Paulo Rodrigues Ferreira
Inspirando-se no Orestes grego, que segundo o mito mata a mãe e seu amante, Paulo Rodrigues Ferreira dá neste livro vida a um Orestes contemporâneo que, entre acusações à progenitora e a tudo o que o rodeia, vai enumerando, capítulo a capítulo, as razões pelas quais se sente desenraizado, impossibilitado de levar uma existência normal, igual à de tantos outros homens banais que conheceu. Uso errado da vida é uma tentativa de reflexão sobre o passado, o presente e o futuro de alguém que não se adaptou à realidade, que não superou o trauma e que, ao mesmo tempo, deseja experimentar felicidade, paz de espírito e bem-estar.
Excerto
A mamã emperiquitara-se na manicura, instalara mise em cima do crânio e botara vestido grená comprado a preço de saldo, sem dúvida que merecia melhores elogios do que os recebidos pelo noivo. Merecia mais do que ser chamada de presunto macio. Nenhuma mulher merecia, nem a mamã, nem ela merecia os rótulos de presunto e vaca. Orestes revoltava-se, era filho, sentia-se magoado, afundava-se no jornal e desembestava vitupérios em surdina, biltre, sebentão, coprófago, escória. A língua de Egisto deslizava pela perna da mamã, e esta sorria, qual ovelha, mé-mé, escrava, de travessa na mão: «O jantar está servido. Arruma o jornal.» A mamã servia o amante e levava chapada no rabo. Mais uma colherada de batatas, chega, chispe do bom, um brinde.
O amante da mãe levava à boca um pedaço de carne e tocava com os dedos na carne (facas para quê, seu diarreia?) e cortava o bife com os dentes e punha o gargalo da garrafa na garganta e arrotava (risada da mé-mé, de ovelhinha, ai mamã lanífera). Orestes injuriava-o calado. Canastrão, canalha, enfelpado. Filho revoltado. «Deslarga o jornal», gritava a mamã, na sua língua aprimorada feita de destes, comestes, fizestes, deslarga, destroca. «Perdi o apetite», dizia Orestes. «Jantar perfeito mas.» Sem apetite, enojado, mãe nua, varizes, pêlos nas pernas, amante javardo.
Nota de leitura