A Dança da Morte
August Strindberg
Uma peça sobre o casamento burguês, de afirmação emergente de um espaço de poder do feminino numa época ainda patriarcal. Que nos fala, portanto, de relações de força, revelando a vida íntima de um casal, as suas desavenças recíprocas, quando este, perto das bodas de prata e em plena crise de sentido, chega a uma fase de introspecção retrospectiva e análise dos papéis e comportamentos de cada um na biografia comum, dos momentos marcantes dessa vida, num balanço infernal e violento, sem lugar a compaixão.
Um texto sobre a monstruosidade de relações engendradas ao longo de 25 anos de vida em comum, relações que tocam a pulsão homicida, a violência sexista, a própria traição.
Um texto sobre o combate de sexos.
Uma peça que nos fala da morte, do fantasma presente da morte na vida quotidiana de Edgar e Alice.
Uma peça sobre o individualismo, mas também sobre a criatura dual, o casal, quando este se comporta de modo uno, indissociado, mesmo que essa cristalização seja potencialmente explosiva.
Uma peça sobre a instrumentalização, sobre o uso instrumental de terceiros, sobre a manipulação e sedução psíquica e sexual.
Um psicodrama pelo modo como fazendo um impiedoso balanço biográfico, pleno de acusações entre ambos, termina condenando o casal a um inferno relacional que apenas a morte pode libertar.
Uma peça sobre a vida numa morte aparente, sobre a cristalização de uma relação previsível nas reacções entre ambos, sobre a auto-exclusão social, sobre o isolamento social, sobre as falsas aparências, sobre a miséria dourada, a fome, sobre a vida enquanto “pequeno inferno”, a casa.
Excerto
O CAPITÃO. Achas que o Kurt é um hipócrita?
ALICE. Sim, claro, é o que eu penso.
O CAPITÃO. E eu acho que não! Todos os que se chegam a nós tornam-se maus, e depois vão-se embora… O Kurt era fraco e o mal é forte… (Silêncio.) Olha como a vida se tornou banal! Dantes batíamos, agora só fazemos ameaças. Tenho quase a certeza de que dentro de três meses havemos de festejar as nossas bodas de prata … com o Kurt como testemunha … e o doutor e a Gerda.
O chefe do arsenal fará um discurso, o ajudante de artilharia gritará “hurra”! O coronel, se eu bem o conheço, aparece sem ser convidado! Sim, tu ris-te, mas lembra-te das bodas de prata do Adolf … do regimento de caçadores! A noiva levava a aliança na mão direita porque, num acesso de ternura, o esposo tinha-lhe cortado o anelar com uma faca. (Alice põe o lenço à frente da boca para se impedir de rir). Estás a chorar? – Não, acho que estás a rir! Sim, pequenina, nós rimos e depois choramos… o que é que é melhor… não me perguntes!… Li, há dias, num jornal, que um homem divorciado por sete vezes, portanto, casado sete vezes… finalmente, fugiu para voltar a casar-se com a primeira mulher! O amor é isto!… Não consigo perceber se a vida é uma coisa séria ou uma brincadeira. Se é uma palhaçada, é mais desagradável. A seriedade é na realidade o que há de mais agradável, de mais tranquilo… Mas quando finalmente conseguimos levar as coisas a sério, aparece um palhaço! Um Kurt, por exemplo!… Queres festejar as nossas bodas de prata? (Alice fica silenciosa.) Diz que sim! Vão rir-se de nós, mas afinal de contas, o que é que isso interessa! Nós rimos também, ou levamos a coisa a sério, de acordo com o nosso humor!…
ALICE. Sim.
O CAPITÃO (sério). Então, bodas de prata!… (Levanta-se) Passar um risco por cima e continuar! Continuemos!
Nota de leitura