Onde não sou é que começo
Paulo Rodrigues Ferreira
Afundado numa posição académica em terras estrangeiras, onde os egos e as rivalidades mesquinhas pesam mais do que as ideias, César Augusto despede-se de um quotidiano sem paixão e mergulha numa sucessão de descidas ao seu inferno pessoal, em busca de qualquer faísca de libertação que o devolva ao fogo que ainda lhe arde no peito. Com a memória povoada por sombras que pairam no seu subconsciente, embarca numa última tentativa de reconciliação consigo mesmo: regressar a Lisboa, cidade da infância, dos primeiros amores e das promessas por cumprir. Entre a desilusão e o desvairo, a raiva e os risinhos amargos, César percorre corredores de universidades e de si mesmo, onde ecos da juventude se confundem com delírios e vestígios de um futuro por inventar. No regresso a Portugal, carrega consigo a esperança de recomeçar num lugar onde se possa despedir de quem já não é.
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Excerto
César Augusto inspirou e expirou vagarosamente, como nos vídeos do mestre hindu que utilizava para aprofundar as suas habilidades de relaxamento, contou carneiros e ovelhas, recitou uma lista de estadistas soviéticos, de Lenin a Gorbachev, desfiou nomes de celebridades cinematográficas dos tempos a preto e branco, liquefez drageias de melatonina em chávenas de chá de tília, executou um montão de flexões e abdominais ao lado da cama, manuseou os volumes do romance de Proust acastelados na mesa de cabeceira desde o paleolítico, grafou máximas desenxabidas no caderno de bolso, mas o corpo estoirado descartava tréguas. Engalfinhou-se nas mantas empapadas de stresse, cambalhotou, rebolou para a esquerda e para a direita, adiantando os labores do dia seguinte, as caretas de escárnio dos colegas de trabalho, os implausíveis desaguisados e bulhas no compartimento das fotocópias que refluiriam em despedimentos por justa causa. Quando os farnicoques de agonias o submeteram, o despertador bombardeou guitarradas que lhe dinamitaram as membranas sonoras e o puseram aos pinotes.
Nota de leitura