Hotel do Norte

Rui Ângelo ARaújo

Em 1975, de norte a sul do país, vários hotéis foram requisitados para acolher a vaga de retornados e refugiados das ex-colónias. O Hotel do Norte, na estância termal de Fonte da Moura, foi um deles.

Durante cerca de um ano, Walter, Delfina e Beirão tiveram um intervalo nas suas vidas. Tudo o que estava para trás se perdera, mas no Hotel do Norte nada parecia avançar, nenhuma outra vida se anunciava, como se o edifício e o parque onde ele se erguia fossem uma cápsula, uma redoma que apenas permitia um quotidiano fechado e sem progressos.

Walter sabe que um dia terá de procurar uma nova vida e deixar aquele lugar, mas os arquivos do hotel exercem sobre ele um fascínio que o impede de pensar no mundo lá fora. Quando descobre a intrigante Catarina, que habita os anos quarenta do século XX, envereda por uma investigação detectivesca através da história e do rasto ténue que os antigos hóspedes deixaram.

No desaparecido Hotel do Norte cruzam-se três épocas, e quem hoje é chamado a revisitar o local vê-se enredado em combinações de realidade e ficção, memória e fantasia, verdade e mentira.

Excerto

Durante um ano, Walter teve um quarto no Hotel do Norte, na estância termal de Fonte da Moura. Dormiu ali a partir dos últimos meses de 1975, numa cama de ferro dourada com duas mesinhas de cabeceira elegantes. Numa delas arrumava-se um bacio em cerâmica e a um canto do quarto havia um lavatório no mesmo material, sobre uma rebuscada armação em ferro forjado. O crucifixo e os dois ou três calendários com mulheres nuas, cujas marcas na parede se podiam adivinhar anos mais tarde, foram contributos seus para a decoração. Não pensava no erotismo e na religião como opostos: desejava do mesmo modo inofensivo a vida eterna e a satisfação do corpo.
Os fantasmas que o visitavam no quarto vinham todos dos anos trinta e quarenta do século xx, de quando o termalismo mobilizava as boas famílias para verões de água e ócio. Foi ele que lhes abriu a porta depois de numa das deambulações pelo hotel encontrar um conjunto de álbuns fotográficos que folheou na varanda do segundo piso, contra a brisa do Outono que se aproximava. Os álbuns eram habitados por cavalheiros distintos, de fato e chapéu, com feições escuras e rudes, e por damas de vestidos compridos, tão feias quanto os seus esposos.
Walter via-os tremer de indignação, por não lhes parecer bem que plebeus da estirpe dele pudessem substituí-los nos quartos que eles alugavam à temporada geração após geração. Havia talvez algo de herético na sua permanência ali, mas só à noite, na cama, se sentia incomodado com isso, fruto da superstição tropical, da crença no poder dos mortos. Durante o dia gostava de profanar o espaço, não com actos destrutivos mas passeando indolentemente a sua presença indesejada pelos cantos.

Nota de leitura

Percorremos décadas e ficamos com a sensação de como as coisas mudaram. Walter acaba por nos conduzir neles, ajudado pelos arquivos do hotel, que ilustram outros tempos e outros olhares. Recuamos a 1941, anos de outra guerra: “Na sua opinião, o hotel era um museu de cera. Quando os hóspedes chegavam para se registar, deixavam na recepção, como às portas do Inferno, as alegrias e os apetites. Aceitar a prescrição clínica de um mês ou dois nas termas era aceitar que o sangue abandonasse as veias para ser substituído por água mineral gaseificada – bebida a goles rigorosos e com pontualidade castrense. Os resquícios de volúpia que teimassem em ficar à flor da pele eram meticulosamente removidos no balneário à força de mangueiras de pressão – que faziam jorrar água gelada, caso a força da agulheta não eliminasse todos os ânimos.” São diferentes olhares que nos dão diferentes ângulos de vida em épocas que se cruzam. A beleza das descrições interiores, a forma como se iluminam os pensamentos pessoais e a dinâmica da narração tornam este romance um belo exercício de escrita. Rui Ângelo Araújo mostra aqui, na sequência do que já havia feito anteriormente, que é um excelso prosador. “Hotel do Norte” é, a partir de um edifício onde se tratam os males, um olhar sobre a própria decadência de um povo e de uma nação.

Fernando Sobral, Jornal de Negócios – 7 de Outubro de 2017.

 

Ficha Técnica

ISBN: 978-989-8592-36-1

Dimensões: 14x22cm

Nº páginas: 300

Ano: 2017 | Setembro

Nº Edição: 114

colecção azulcobalto | ficções 045

Género: Romance

PVP: 16

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