Receitas para Fritar a Humanidade
José Martins Garcia
Prefácio: Álvaro Laborinho Lúcio
José Marins Garcia reúne uma superior qualidade de escrita a um profundo sentido de observação e a uma densa cultura plural, o que lhe permite juntar num todo coerente o estilo, a procura da forma adequada a cada situação, a necessidade de interlocução e a captação crítica do real. Por aquele, ora toca mesmo traços do discurso modernista, ora se entrega à narrativa mais canónica, dando-nos então o sabor da ironia que deixa transparecer em “Antifábula”, onde podemos ler «por isso gosto é de contar histórias […], agredir a fixidez frita das ideias com esse movimento marítimo que está no cerne da narrativa» (…) José Martins Garcia toca de passagem o absurdo, quase numa procura do surreal, quando escreve Transigência e critica, sarcástico, a Humildade, oferecendo-nos a figura do «celibatário da consciência». Na fritura da humanidade, inscreve Adolfo Hitler e volta a jogar com o absurdo convocando agora o leitor a percorrer o labirinto dos sentidos, das convicções e dos compromissos, levando-o até à beira da Revolução, «forçando-o» aí a ser parte. Receitas Para Fritar A Humanidade abre com “Augúrio” e termina com “Pátri”a. De ambos os textos, ressalta a capacidade narrativa- crítica do autor, acabando o leitor tentado a uma interpretação que os ligue sequencialmente, como se todos os restantes constituíssem o miolo de uma obra que nasce e renasce entre o início e o seu final.
Álvaro Laborinho Lúcio
Excerto
REVOLUÇÃO
Uma das maneiras mais delirantes de estorricar a humanidade consiste nesse fenómeno a que nos últimos séculos se tem chamado «revolução».
A revolução, cuja ideia se espalha persistentemente em camadas cada vez mais amplas do planeta, poderá ser uma epidemia. Desprendida do reduzido e secreto núcleo, mais ou menos filosofante, onde outrora nasciam e cresciam os ideais, a revolução poderá até transformar-se em peste negra. Ou numa lepra da alma — pois sabe-se como a do corpo deu matéria a grandes milagres cristãos. Ou numa tuberculose do intelecto — antes de inventada a penicilina. Ou no cancro — o incurável da presente data. Talvez isso mesmo. Uma revolta ainda mal explicada de algumas células contra o organismo que as inclui. A revolução é a mania do nosso tempo, tal como o cancro é o seu terror fisiológico.
Um dia, encontrei um antigo exilado político, homem de extrema-esquerda (à francesa), que me azucrinou as orelhas com justas críticas à sem-vergonha de todos os partidos. Quando se apercebeu de que, no tocante a partidos, eu comungava desse pessimismo, desabafou:
— Fomos todos traídos! E se fundássemos um movimento?….
É isto! É uma voga! É como usar-se calça larga ou apertada. Não se resiste. Recomeça-se.
Há, evidentemente, quem neutralize a tentação
Nota de leitura