Raiva
Gisela Cañamero
Raiva é um texto dramático escrito de raiz, que se baseia na relação tóxica de uma mãe punitiva e vingadora, com traços narcisistas, com a sua filha, aqui revelado nas memórias partilhadas desde pequena criança até à idade adulta, promovendo, com humor negro, a discussão sobre a controversa temática do amor de mãe e da sua natureza inata… ou nem por isso.
Escrito a partir de um caso real – parcialmente exposto no álbum ilustrado Não te amo, mãe (Lagarto Edições, 2023) da autoria de Gisela Cañamero (texto) e Cristina Viana (ilustração) – abordaremos, neste texto (dramático) a intensidade emocional que habita a relação entre Mãe (em idade sénior) e Filha (em idade adulta), condenadas a viverem juntas, apesar de se odiarem mutuamente – que faz extrapolar não só o desamor, mas também o humor negro de que necessitam para se agredirem, se manipularem, e conseguirem viver em coabitação.
Na sombra, o velho pai, que, estando ausente de cena, estará sempre presente, no esgrimir de razões que ambas reclamam para si.
Assistiremos à evidência do Teatro, no seu cerne de despojamento de artifícios, onde a excelência da prestação das duas actrizes convidadas – Luzia Paramés e Sara Castanheira – instaurará, em cena, a realidade de dois personagens que se alimentam e consomem pela raiva que nutrem uma pela outra.
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Excerto
CENA II
Mãe
Devia-lhe ter partido a cara, em miúda.
Agora é tarde, pois.
Põe os auscultadores nos ouvidos, e vai acompanhando a oração da missa transmitida na rádio.
Creio em um só Deus,
Pai todo-poderoso,
Criador do céu e da terra
De todas as coisas visíveis e invisíveis.
Claro que desde que nasceu que é isto.
Só nasceu para me provocar.
Esta mulher é a minha cruz.
… Deus verdadeiro de Deus verdadeiro;
Gerado, não criado, consubstancial ao Pai.
Claro que se o pai tivesse feito o que lhe disse
– desde o princípio!… um bananas!…
Porque ser só eu a dar tareias… foi pouco.
… padeceu e foi sepultado.
… foi pouco; e agora é isto.
Ressuscitou ao terceiro dia,
conforme as Escrituras;
e subiu aos céus,
Agora eu pergunto: se não fosse a pensão do pai,
Se não fosse a minha pensão… de que que é que esta gaja vivia?
Para dentro
Nem para a merda do tabaco tinhas!
… Creio no Espírito Santo.
Senhor que dá a vida,
e procede do Pai e do Filho;
É uma sonsa! A armar-se em anjinho!
Puta! Puta!
… Creio na Igreja una, santa,
católica e apostólica.
Devia tê-la afogado à nascença.
Como se faz aos gatos! Pia abaixo, zás!
… E espero a ressurreição dos mortos,
e vida do mundo que há-de vir. Amén.
Benze-se.
Nota de leitura