O Segundo Olhar
Inês Lourenço
Este O Segundo Olhar surge da confluência de algumas circunstâncias, que justificam uma breve referência. Embora avessa à constatação de marcos de temporalidades biográficas, dei-me conta que neste decorrente 2015 se completam 35 anos sobre a data da edição do meu primeiro livro de poesia (1980). Conversando com dois amigos poetas, que acrescentam à arte dos versos outras valências estéticas, surgiu a ideia de uma colectânea de poemas escolhidos a gosto do autor da recolha, justificada num posfácio e englobando eixos temático-expressivos reincidentes nos meus livros. Assim, abracei esta ideia, ladeada por um poeta editor e por um poeta antologiador.
Um terceiro vértice desta conjunção me agrada sobremaneira: o facto de ver os meus poemas publicados numa editora insular. Esta característica de coisa feita em território ilhéu provoca-me toda uma nostálgica empatia dos lugares literários do amor camoniano, dos sítios exóticos e intocados, dos banimentos e exílios de tanta gente. Parece que da sintonia destas afinidades sairá obra capaz de cativar os conviventes da poesia.
[I.L., Porto, Julho de 2015]
Excerto
PLENILÚNIO
O segundo olhar, uma espécie
de leitura nas vísceras
do primeiro, como os áugures
lêem no interior das aves
recém-imoladas. Fechamos os olhos
e acende-se melhor um rosto, um ângulo
incerto de janela, torres, arcos
de pontes cruzando o largo rio. Na
névoa hialina da distância
sob a pupila comungamos
o plenilúnio das imagens.
Nota de leitura
A obra de Inês Lourenço trabalha sobre a luz de ontem, servindo-se perfeitamente dela para adivinhar a ele amanhã. Entre secas frases curtas que parecem apreender a própria sensação de desbotar dos dias, os seus poemas funcionam como crónicas, numa arte que realinha as pequenas circunstâncias e as serve num balanço que sabe cair ao lado ela provocação sem se ficar por aí. Muitas vezes ríspida, num tom que varia entre o remoque e a voz trocista, roçando o discurso do “eu bem te avisei”, alguns dos seus melhores poemas começam como inofensivos bordados onde, de súbito, uma subtil deceção abre caminho a notas de uma perspicácia que fere. Com um gosto pelos quadros que capturam “a intransitiva beleza do malogro”, as questões de fonética que arrastam algo mais, céus povoados de “um bando de reflexos” das leituras que lhe servem de companhia – Cesário, Raul Brandão, Pedro Homem de Mello, Eugénio… Nesta poesia que procura ser direta, e que interpela sem resvalar para a retórica, sente-se uma fidelidade quase furiosa pelos detalhes, um sério instinto para os sublinhados e destaques, ainda que algumas vezes não se salve de levar demasiado à letra o Código do Procedimento Administrativo para o real quotidiano. A meio ele um longo poema (“Avulso”, pág. 23) a autora abre um parêntesis para rechaçar “os leitores/ amantes de ambiguidades/ várias ou da luminosa literatice mística” que poderão andar por ali ao engano, “à procura do rigor poético”. Se há um tom desafi ador, uma lucidez que por vezes se quer elevada à condição de uma moral, o que esta antologia da responsabilidade do poeta José Manuel Teixeira da Silva consegue é afi nar um dos percursos mais coerentes e habilidosos no campo da poesia portuguesa atual, com uma obra que, ao longo de mais três décadas, elaborou momentos que, de tão veementes, alcançam um esplendor e o tal rigor poético que nos cativa na obra de enormíssimos vultos da poesia contemporânea como Vitorino Nemésio e Jorge de Sena. Um exemplo desse apuro e mestria encontramos num brevíssimo poema como “Animais arrancados em redor”: “Para enterrar um corpo/ quantas pequenas ervas/ e escondidas larvas/ são aniquiladas. O golpe/ seco da pá desentranha os/ mínimos seres, com/ o rumor de um barco vazio/ que ainda singra/ contra a falésia.” (…).
[Diogo Vaz Pinto, jornal “i”, 26 de Dezembro de 2015]