O Medo
José Martins Garcia
Abertura de Alexandre Borges
Sempre desconfiei da qualidade intrínseca de poemas sobre cravos. O realismo dá-se-me mal com amanhãs que cantam. Entendo que está por fazer justiça àqueles que, como José Martins Garcia, tiveram a coragem de não escrever para serem amados. De não jogar para a canonização instantânea.
Martins Garcia, que militou brevemente nos primeiros tempos do Partido Socialista, que escreveu no República e, depois, no Jornal Novo, que, antes disso, andara de G3 pela Guiné, verte essas vivências para o olhar cortante com que capta o medo durante um tempo, entre 1974 e 75, que ficou para a História descrito como “PREC” – Processo Revolucionário Em Curso.
E, embora não estejam lá os nomes das personagens que habitam a Lisboa desses dias, estão todas as pistas para que as deduzamos à memória recente do país – com o “Xerife” à cabeça. Os excessos, os embustes, as contradições desses dias, estão todos aqui, retratados sem apelo nem agravo, sem deslumbre, nem sequer mágoa – apenas a crua razão, serena e distante, que tão mal tende a cair aos estômagos mais sensíveis.
[…] Outros cantaram e cantarão as glórias de Abril. Outros a maravilha da bruma açoriana. Aqui, quem quiser entrar, é favor pendurar o deslumbre à porta. E deixar-nos em sossego com os nossos cigarros e o nosso pessimismo.
[Alexandre Borges, em “Isto do Medo”, texto de abertura de O Medo]
Excerto
Descia a tarde de um dia meteorologicamente límpido, 25 de Abril de 1974. Alberto Sintra filmou imensidões quase históricas e consequentemente tem os olhos raiados de sangue revolucionário. Aparício da Paz introduziu na acanhada redacção do Democracia uns Alemães de fartas gadelhas que o entrevistaram com imagem e som – hora triunfal, cada qual em frente enquanto é tempo!
A Europa está connosco! O “Xerife”, qual raio movido pela grande causa, continua a preparar-se para chegar vitoriosamente a Portugal. Não virá só. Virão muitos. Virão todos: pregadores, apóstolos, revolucionários, salvadores, pilhadores, pataratas, anjolas, pobretanas, contrabandistas, esqueletos de mártires e enxundiosos chulos – todos ungidos pela fúria colectivista.
Enquanto os redentores viajam ou tencionam viajar rumo a Lisboa, trazidos dos mais variados escaninhos do exílio, alguns resistentes do interior cirandam pela redacção do Democracia, ali a dois passos do Quartel do Carmo, onde a Guarda Republicana se entretém para o que der e vier; enquanto a tropa, com blindados e de cravos nas espingardas, se movimenta de cá para lá e de lá para cá. Os resistentes do interior, embora de longe em longe apreensivos, encontram-se optimistas a ponto de já distribuírem as pastas governamentais. Soa uma rajada para os lados do Carmo. Posso ouvir nitidamente num aparelho de rádio: «Nossa Senhora me valha! Está aqui um fogo terrívle! Ai Jasus! Nunca vi um fogo assim!»
Não consigo reprimir um depreciativo pensamento. Meia dúzia de tiros fazem ganir um guarda por Cristo e pela Virgem Maria. Com defensores desta estirpe – penso – é de espantar que durante quarenta e tal anos ninguém os tenha abatido, ou tentado uma revolução, um golpe, ou ao menos um tiroteio folclórico. Décadas de medo e de soterrados heroísmos, conspirações, movimentos generosos, libertadores e falhados… quando afinal uma rajada de espingarda-automática chega para borrar as cuecas a um regimento!…
Nota de leitura