Malmsey. Um doce perfume
Maria Aurora Carvalho Homem
Ilustrações de Ana Sousa
Em Malmsey − Um doce perfume, Guiomar de Sá Vilhena, “a mais importante exportadora de Vinho Madeira do Século xviii” – é assim que Maria Aurora Carvalho Homem se refere à protagonista antes de começar a narrativa -, é apresentada em dois planos temporais distintos: o da sua infância, com treze anos, na casa de família, na Quinta do Estreito, e na idade adulta, no Palacete da Quinta das Angústias, uma “mulher seca [que] já passou há muito dos quarenta anos” (pág. 11), embora não revele a idade.
Mas a vida também se escreve de morte: primeiro, a do irmão Francisco José, inexplicável e repentina, depois, a de Maria Madalena, a pequenita débil e muito branca, que se desdobraria na morte em vida da mãe, Mariana de Vilhena, já que nunca iria conseguir ultrapassar a perda desses dois dos sete filhos que tivera, “debilitada e encolhida no grande cadeirão da sala” (pág. 32), envolta num “uivo desesperante engolido no derrame das lágrimas e no sufoco da dor” (pág. 20). Vida que se expande até a idade adulta de Guiomar, “[s]enhora da ilha, dona de um império de terras e haveres [que] comanda com mão de ferro, herdeira única de várias fortunas” (pág. 12), uma mulher arrojada que “sabia ler, escrever e contar” (pág. 25), dando a ver o seu percurso na expansão e liderança do negócio da família e assim também a audácia da sua afirmação, enquanto mulher, na sociedade tradicional do remoto século XVIII.
[do Prefácio de Ana Isabel Moniz]
Excerto
Guiomar estende o olhar pela baía. Do Balcão da sua casa de prazer, ao seu palacete na Quinta das Angústias, domina toda a frente mar até ao limite da Ponta do Garajau, por onde enfunam as Velas das naus, das galeras e dos bergantins.
O mar está translúcido, a murmurar em franjas brancas junto ao calhau e a afundar-se em tinta-negra para além dos ilhéus. A terra galga montanha acima e escassas casas pespontam um manto verde e esfuziante.
A baía fervilha de movimento. Na concha desenhada pelo mar destaca-se, no extremo, a fortaleza de Santiago com elegantes torres assentes na praia de calhau. Diversas barcas correm entre as embarcações e a praia de areia cinzenta que debrua as Portas da Cidade.
Guiomar aspira o cheiro que vem do mar. Chega-lhe o per-
fume dos lilases que trepam falésia acima até parapeito bem desenhado.
Está um belo dia de primavera. Em breve, aportará ao cais, mas um dos seus bergantins.
A Senhora do Livramento descarregara na véspera depois de uma longa viagem às Américas e às Antilhas. Trouxera sacos de farinha, trigo, madeiras, cera e manteiga. A Senhora do Monte partirá nessa semana, o bojo carregado de vinho, que leva rumo
à India.
Guiomar é uma mulher seca.
Já passou há muito dos quarenta anos. Mas não revela a idade. Veste de rigoroso azul-escuro, saia franzida e corpete brilhante de veludíne.
Nota de leitura