Jogo do Fim
Samuel Beckett
Endgame é o nome inglês para a peça escrita antes em francês, por isso Jogo do fim. O que tem dois sentidos: o de fim da natureza e o fim no teatro, repetição, regresso do mesmo a cada espectáculo, todos os dias começo e fim, jogo. A cena é um refúgio, o nome que sobra na situação pós-apocalíptica instalada, para se dizer home e que em Beckett significa dispositivo cénico, armadilha a que os corpos estão confinados. O fim, entretanto, está no princípio, na história sem história que se desenrola, tudo aconteceu antes e é sinalizado pelos corpos amputados, em perda, condenados a uma imobilidade a que apenas escapa Clov, o “servo” que anda por todos mantendo a mecânica da rotina do que repetem à espera do fim que parece não vir. A catástrofe anterior determina obviamente o que deixou de ser acontecimento, factos, possibilidade de vida nova na vida hoje. Habitam um tempo zero, a observar dos dois janelos, direita e esquerda de cena, a natureza extinta, o deserto que progride e a confirmação disso mesmo — o fim é o horizonte de expectativa e o facto de não surgir converte o jogo num prolongamento absurdo de inacção, pura inércia, propício a um cinismo sarcástico como ar que se respira.
(Fernando Mora Ramos, encenador)
Preço de livraria: 14 €. Na Companhia das Ilhas: 12,6€. Portes gratuitos. Pedidos para: companhiadasilhas.lda@gmail.com
Excerto
(…)
CLOV (olhar fixo, voz neutra) — Acabou, acabou-se, isto vai acabar, talvez vá acabar. (Um tempo.) Os grãos somam-se aos grãos, um a um, e um dia, de repente, é um monte, um montinho, o monte impossível. (Um tempo.) Já não me podem castigar. (Um tempo.) Vou para a minha cozinha, três metros, por três metros, por três metros, esperar que ele me apite. (Um tempo.) São umas belas dimensões, vou apoiar-me na mesa, vou olhar para a parede, esperar que ele me apite.
Fica um instante imóvel. Depois sai. Volta logo, vai pegar no escadote, sai levando o escadote. Um tempo. Hamm mexe-se. Boceja por baixo do lenço. Tira o lenço da cara. Tez muito vermelha. Óculos negros.
HAMM. — É – (Bocejos.) – é a minha. (Um tempo.) É a minha deixa. (Segura o lenço aberto à sua frente com os braços estendidos.) Velho trapo! (Tira os óculos, esfrega os olhos, a cara, limpa as lentes, volta a pô-los, dobra cuidadosamente o lenço e mete-o delicadamente no bolso de cima do roupão. Pigarreia, junta a ponta dos dedos.) — Poderá haver miséria mais… mais extrema do que a minha? Sem dúvida. Outrora. Mas hoje? (Um tempo.) O meu pai? (Um tempo.) A minha mãe? (Um tempo.) O meu… cão? (Um tempo.) Oh quero acreditar que hão-de sofrer tanto quanto criaturas dessas possam sofrer. Mas quererá isso dizer que os nossos sofrimentos são comparáveis? Sem dúvida. (Um tempo.) Não, tudo é a — (bocejos) bsoluto, (orgulhoso) quanto maior mais cheio. (Um tempo. Esmorecido.) E mais vazio. (Espirra.) Clov! (Um tempo.) Não, estou sozinho. (Um tempo.) Que sonhos! Aquelas florestas! Basta, é tempo de isto acabar, no refúgio também. (Um tempo.) E no entanto hesito em… em acabar. Sim, é isso mesmo, é tempo de isto acabar e no entanto hesito ainda em — (Bocejos.) — acabar. (Bocejos.) Ai, ai ai, o que é que eu tenho, mais valia ir deitar-me. (Dá uma apitadela. Clov entra logo. Pára junto ao cadeirão.) Tu empestas o ar! (Um tempo.) Prepara-me, vou deitar-me.
CLOV. — Ainda agora te levantei.
HAMM. — E depois?
CLOV. — Não posso levantar-te e deitar-te de cinco em cinco minutos, tenho que fazer.
(…)
Nota de leitura