Cinco Cavalos Abatidos e Outros Poemas
Rui Almeida
Rui Almeida – uma das vozes mais sólidas e seguras da contemporaneidade poética portuguesa – regressa à Companhia das Ilhas. A poderosa e desoladora imagem do título – Cinco Cavalos Abatidos – corresponde-se com um título noticioso do dia último de 2013 e constitui uma chave de leitura para estes poemas, em que se conjuga uma crítica implacável à realidade contemporânea com um aproveitamento prodigioso do material poético do quotidiano. Alguns destes textos remetem para outras obras artísticas, sobretudo nos campos da fotografia e da pintura, para a partir delas urdir um diálogo intenso com a actualidade, fundindo o olhar do poeta e o do cronista, num retrato avassalador que percorre a geografia nacional e a indigência das suas instituições, se desmaterializa e censura sem tréguas a hegemonia capitalista global e os seus algozes sem rosto, e a que sequer falta a reprovação dos oprimidos da ordem instituída, à qual, alienados, não oferecem resistência: «escravos do que consumis, escravos / Do que vos consome, esse Saturno / Insaciável, a quem tratais / Por pai e vos devora sem piedade». Cinco Cavalos Abatidos foi um título de notícia que se transmudou em título de um livro e de um poema nele contido – mas podia ser o de uma fotografia ou o de uma pintura, onde nos reveríamos todos assim, mortos «sem motivo aparente», sem tão-somente direito de encarar os nossos carrascos, despojados de «préstimo ou elevação», deserdados da «História, à qual tudo perdoamos / Em nome da erudição / (…) / Na heterodoxa afasia / Que tanto alívio dá à memória».
Excerto
Cinco cavalos abatidos no último
Dia do ano, dizem as notícias. E nada
Mais há que nos faça pensar na vida
Ou na falta dela. Abatidos sem razão
Aparente. Somos o que podemos ser
Perante a facilidade com que nos entram
Os dias para dentro do corpo. Cada
Sopro de incerteza nos abala, célula a
Célula, a existência, duma ponta à outra.
E vemos cavalos a surgirem do texto
Limpo de uma notícia, mortos, sem
Correrem nem saltarem. Morremos
Com eles, cada dia, cada minuto, somos
Demasiado tristes para nos afastarmos
Das letras no jornal, demasiado lúcidos
Para nos desviarmos da dor que não é
Nossa nem de outra existência qualquer.
No último dia do ano há
Notícias e há nomes a serem ditos por
Bocas felizes e por bocas tristes,
Há gente a comer o pão seco de ante-
Ontem e gente a comer nada. Lemos
Como se fosse o último dia da vida,
O último minuto possível antes do sono
Calmo e do silêncio das marés.
Nota de leitura