A morte dos outros
Paulo da Costa Domingos
Finalmente reunidas em livro prosas dispersas que o poeta Paulo da Costa Domingos publicou nos anos 80-90 na imprensa periódica, sob a ideia estilística genérica de “apócrifos”, exercício literário em que, com a necessária humildade e sem ilusões, são imitados autores como Vincent Van Gogh, Andrei Tarkovskii, Arsenii Tarkovskii, Jorge Luis Borges, Mikahil Bakunine, Carlos de Oliveira e Vitorino Nemésio. Ou talvez não…
Excerto
Estala-me o crânio, ouço os guizos imóveis da multidão urbana espoliada do seu prestígio antigo, oiço o gemido inaugural do declínio, e é como uma porta às escâncaras à vibração forte perto da armadilha e do embuste deste meio século. Uma fala que o coração quer; guizos tresloucados. Contra o esquecimen-to, a amnésia anódina de um tal precipício. Não nos permitimos confundir a cobardia do mutismo álacre das energias da cidade com uma cor primária. Aí, eu evito pintar. Todo o marinheiro sabe azado o mo-mento de recolher a vela e ir à bolina, se pretende proteger da tormenta a gávea.
[de “Cerúmen de além-túmulo. Carta apócrifa a Théo”]
Nota de leitura
Neste volume curto mas denso, Paulo da Costa Domingos recupera seis textos publicados na revista Ler, no início da década de 90. São exercícios de escrita austeros, em que o autor se coloca no lugar das figuras de quem se aproxima: Vincent Van Gogh, Andrei Tarkovskii, Jorge Luis Borges, Mikhail Bakunine, Carlos de Oliveira e Vitorino Nemésio. Evitando a artificialidade do pastiche, PCD procura tocar o que há de carne viva nas palavras dos outros. (…) A prosa de PCD procura os nódulos da matéria, a pedra bruta, uma certa aridez. Única excepção: o conto “nemesiano”, relato épico do naufrágio de um navio com “lastro” humano.
[José Mário Silva, Expresso/Atual]