A Canção dos Velhos Esposos
Pierre Loti
TRADUÇÃO: Miguel Martins
ILUSTRAÇÕES: Ana Roque
Creio que o primeiro livro de Loti que li foi Pescador da Islândia. A sua Bretanha era, para mim, exótica o bastante. Mas só os títulos do seu orientalismo, hoje tão criticável
(o que tanto me dá), vieram a cativar verdadeiramente o meu desejo de escapist entertainment, de fuga à realidade circundante, sob a forma de outros espaços e tempos, ainda que caricaturais e eurocêntricos (sim, sou desses, pelo menos quando se trata de ficção e, mais especificamente, de ficção fin de siècle). A Ilha de Páscoa, então, foi um encanto, complementando as narrativas de Jacques-Yves Cousteau, Thor Heyerdahl ou Francis Mazière que lera na adolescência. E, décadas volvidas, quando este conto me veio parar às mãos, estando temporariamente sem trabalho tradutório remunerado, lancei mãos à obra (quem dera que a tradução pudesse ser sempre feita assim, mas há a pequena questão do almoço e do Euromilhões que teima em não chegar…). Espero que se divirtam a lê-lo. Nem sempre é preciso mais do que isso, sobretudo se não se for um chato da pinica, se me é permitida a expressão brejeira. E, já agora, espero que apreciem as ilustrações com que a Ana nos enriqueceu o prazer da leitura. É tudo. Chega? É que, quanto ao estruturalismo, por exemplo, não se me oferece dizer nada. Nadinha.
Miguel Martins
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Excerto
T oto-San e Kaka-San, o marido e a mulher.
Eram velhos, velhos; conheciam-nos desde sempre; nem os mais antigos de Nagazaki se lembravam de os terem visto jovens.
Mendigavam pelas ruas. Toto-San, que era cego, puxava Kaka-San, que era paralítica, numa pequena caixa com rodinhas.
Outrora, chamava-se Hato-San e Oumé-San (senhor Pombo e senhora Ameixa), mas já ninguém se lembrava disso.
Em língua nipónica, Toto e Kaka são palavras muito doces que, na boca das crianças, significam “pai” e “mãe”. Sem dúvida por causa da sua provecta idade, toda a gente lhes chamava assim; e, naquele país de excessiva educação, a seguir a estes nomes amigáveis vinha o termo San, que é honorífico, como senhor ou senhora (senhor papá e senhora mamã); mesmo os bebés mais pequenos não se esquecem nunca dessas fórmulas de etiqueta.
A sua maneira de mendigar era discreta e como deve ser; não incomodavam as pessoas com súplicas — sem nada dizer, limitavam-se a estender as mãos, pobres mãos enrugadas sobre as quais havia já uma espécie de vincos
de múmia. Davam-lhes arroz, cabeças de peixe, sopas velhas.
Nota de leitura