Facas

Valério Romão

Facas é um livro que assume uma centralidade temática contrastante com a liberdade formal com a qual exprime, em mutações de forma e de tom ao longo dos contos que o compõem, as diversas declinações do objecto que empresta o título ao livro, ora sublimando-as num realismo tão mágico como grotesco, ora tornando-as as máscaras mais visíveis de uma natureza humana caleidoscópica, ora desafiando livro, leitor e lógica, desapossando-os pouco a pouco da clareza e segurança de uma definição, como quem estando na praia não saber dizer se a praia é a areia ou o mar.

 

Excerto

Envelheço. Morro, em cada dia definho um pouco mais. Metido entre estas paredes de gritos, rebusco um passado que não percebo, que não domino, um passado que me escapa por entre os dedos, anos e anos de hiatos, será que vivi, será que algum dia me senti vivo ao ponto de querer bater com a porta no ontem e de olhá-lo de soslaio e com desprezo? As muletas pesam cada vez mais, as muletas que me rebocam generosamente de uma tristeza a outra, eu, o homem das quatro pernas, o aleijado que afia os cornos na ombreira da porta do quarto onde a tua mãe se escarrapacha com os pretos, eu a olhar pela fechadura, agarrado às muletas, por vezes tropeço e bato com a cabeça na porta, a tua mãe ri e grita mais alto e o preto entusiasma-se, mete a quinta no vaivém frenético e eu lembro-me de que não sou homem, de que sou um bicho assexuado e não consigo deixar de espreitar, a tua mãe a rugir e eu com o olho cravado na fechadura, o mesmo olho que vê e que não vê, o mesmo olho de que jorram galões de água do mar com que desesperadamente tento lavar os remorsos.

 

Nota de leitura

Dividido em três partes, o mais recente livro de Valério Romão (n. 1974), junta histórias perturbantes sob um denominador comum: facas. Usando diferentes registos narrativos, o autor explora, de maneira assertiva, as entranhas secretas do que se esconde por detrás de vidas aparentemente normais. (…) A história que abre o livro, Facas na Solidão, é o exemplo perfeito deste mecanismo de dissecação que deixa tudo à mostra. (…) O estilo (sobretudo o ritmo narrativo) e o cenário deste primeiro conto, convocam de imediato a escrita de Lobo Antunes. (…) As restantes histórias, sobretudo o conjunto da segunda parte do livro, Sete pequenos canivetes, não fogem deste registo cru e sem piedade em que as personagens parecem querer mostrar-se “escrevendo-se com o seu próprio sangue”.
[José Riço Direitinho, Sexta-Feira 6 de Dezembro de 2013, suplemento do jornal Público]

 

Ficha Técnica

ISBN: 978-989-8592-36-1

Dimensões: 11×15

Nº páginas: 100

Ano: 2013

Nº Edição: 28

Género: Ficção/Conto

PVP: 12 €

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