10 de Outubro de 2019
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Findou o tempo dos barbecues e dos “bronzes”, a silly season também já se foi, mas não se preocupem, já de seguida a sardinhada dos nobéis.
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ESCREVER
Ser rapariga nunca foi um projecto, nunca o foi ser mulher. A escrita é um projecto, ser mulher é um dado. Um dado sujeito a trabalho e a investimento, mas um dado. Ser mulher é um fardo, mas também o seria ser homem. Aprende-se com os outros, com as mulheres e com os homens (o que se vê ou não se vê nos olhos deles, o que desejam, o que desprezam). Na escrita, nunca há o que aprender, é preciso roubar quanto houver para roubar e acabar sozinha diante do papel. Um investimento a fundo perdido, gostaria de dizer, se de facto fosse um investimento. Não o é, apenas a resposta tão prescindível quanto necessária à suspeita de que não há nada que a carne não cubra, nada que à carne não tenha já sido retirado, tão sem recurso como um despejo judicial, prescrito o prazo de reclamação. Não haveria o que reclamar. Resta escrever. Escrever porque é preciso falar deste tempo e porque é preciso perguntar por outro, escrever porque é preciso provocar a crítica e porque é preciso ignorá-la, escrever porque é preciso escrever e porque é completamente prescindível. E continuar sozinha, a ter de falar quando preferia ficar calada, a ter de ficar calada quando supunha (um equívoco, sem dúvida) ter alguma coisa para dizer. E continuar, falar tão alto que não possa ouvir, e fazê-lo com a convicção ou a expectativa de que alguém vá passar as palavras para papel impresso, que as vá paginar, enviar para a gráfica, fazer delas coisa, distribuí-las, que alguém as há-de ler, que alguém as há-de evitar, que alguém as há-de abandonar. Sabia disso, disponível para prosseguir a alinhar frases quando talvez fosse preferível (ou mais sensato, ou mais seguro) ficar calada, olhar para o papel e pesar um vazio de onde ninguém resgataria ninguém. Não a resgataria o silêncio, não a resgatariam as outras palavras, como pedra que, ao cair no charco, antecipa quem a atirou. Escrever talvez fosse isso, um lugar onde não é possível distinguir o que é do que não é: o que nunca fora, o que ainda não era, o que nunca seria.
Madalena de Castro Campos
Madalena de Castro Campos (Lisboa, 1984) publicou o seu primeiro livro de poemas, O Fardo do Homem Branco, na Companhia das Ilhas, em 2013; seguiram-se, sempre na Companhia das Ilhas, La Mariée Mise à Nu (2017) e The Gun in the Garland (2019).
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PRÉ-PUBLICAÇÃO
Samar, tal como a maioria das pessoas, odeia a maioria das pessoas. O ódio, como a humidade nos trópicos, é um tópico persistente na sua paisagem mental. Contudo, naquela madrugada, resfriando especado no ESA sob uma bátega, faltou-lhe até a proactividade ingénita para odiar os passageiros do avião rolando pelo taxiway em obediência aos comandos do SOA. Trabalhava na placa à chuva pela primeira vez desde o exame final da formação, contra a sua lealdade ao ódio uma cantilena de conforto conspirava dos confins do cérebro. Odiou, portanto, somente os colegas que ficaram a jogar à sueca. Rijo, encharcado e pingando que nem uma estalactite, sem um biombo barrando o briol, os olhos aos sacões cegos, mijados por rabanadas, tentou autocontrolar-se, obtundir esse ódio, focar-se nas instruções do SOA, não quer enveredar por erros, nem atribular a aterragem, nem encalacrar o emprego, acima do ódio pelos colegas está o amor, e os passageiros que hoje ajudar a aterrar serão os passageiros que um dia aniquilará em prova do seu amor por Alá.
Os auscultadores sucumbiam ao ribombo das turbinas. Até com vinte handlers à volta, só, como no ventre dum nevão. Os olhos não deslargavam o SOA, um borrão no meio do betão. Apalpou as algibeiras das calças, os dedos contraíram os contornos do pastel de feijão que ia mordiscando nas pausas e dos fodes espalhados pela ventania que recolhera da pista. Os motores minguavam de trovão a mosquito. Apagaram-se por fim as luzes anti-colisão. O SOA gesticulou e o placa dos calços avançou temeroso de calços nas mãos, ajeitou um par no trem dianteiro, depois outro par no trem traseiro. Era competente, Samar copiou por ele no exame. Calçado e imobilizado o avião, as várias equipas expeliram a tensão expectante e atiraram-se às tarefas: era o catering pondo as refeições dentro do avião, era a dupla do combustível atestando o tanque debaixo do nariz, era o carro com a escada aproximando-se do lado direito, era um placa encaixando os pawl locks para a hospedeira iniciar o desembarque, era Stanislau avançando do lado esquerdo com o belt loader, pianinho, até junto do avião. Parou aos 5 metros, depois aos 2 metros para o teste obrigatório dos travões, e levantou o tapete. Seguindo as instruções de Samar, à sua frente, continuou a 5km/h para que o SOA não lhe caçasse o cartão de acesso. Travou a 4 centímetros da fuselagem da porta do porão, o tapete num alinhamento perfeitaço. Samar saltou lá para dentro, hoje era ele a rastejar até ao fundo, acocorado como um guerrilheiro num esgoto de Alepo. Alcançou a bagagem e deslizou-a para Kizua, à porta, que a foi despachando no belt descendente. Um joelho levantado, outro no chão, recebia-a aquele lídimo manequim das posturas de segurança. Primeiro seguiram as malas com a etiqueta BS, depois as malas de short-connections, que tinham de transitar a toda a ganga para outros aviões já já a partir, a seguir as malas BF, as BC, e finalmente as económicas. Samar sabia de antemão graças ao team leader que aquele voo não continha correio, menos stress.
Excerto de “Fantasias na placa”, do livro Um dia, um grande homem eloquente, de Luís Miguel Rosa (Companhia das Ilhas, Agosto de 2019, em breve nas livrarias).
Luís Miguel Rosa (Lisboa, 1984), publicou também na Companhia das Ilhas a colectânea de contos Nova Arte de Conceitos (2017).
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Fazemos livros.