3 de Outubro de 2019
¶ Pedro Eiras assina uma recensão sobre o livro A Gun in the Garland, de Madalena de Castro Campos (Companhia das Ilhas, 2019) na revista Colóquio-Letras,da Fundação Calouste Gulbenkian, n.º 202, de Set.-Dez. de 2019. Nos números #010 e #011 desta “folha” publicámos o texto de Maria do Céu Fraga sobre Poesia I (1916-1940), de Vitorino Nemésio (Companhia das Ilhas/ Imprensa Nacional, 2018) e o de José Manuel de Vasconcelos sobre A Pessoa Indicada, de José Viale Moutinho (Companhia das Ilhas, 2018): estas três recensões integram o mesmo número da revista da Gulbenkian. Transcrição, com a “devida vénia” ao autor e à revista, do texto de Pedro Eiras.
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Depois de publicar O Fardo do Homem Branco (2013) e La Mariée Mise à Nu (2017), Madalena de Castro Campos regressa, no seu terceiro livro de poesia, a uma escrita furiosa, corrosiva, muitas vezes auto-irónica, sempre implacável. Logo a partir do título, A Gun in the Garland, é impossível ler este livro ao engano: onde houver uma grinalda, suposta celebração da beleza, contemplativa e bucólica, na verdade ela incluirá uma arma, explosão latente, disparo feroz contra o cerco do mundo.

Em rigor, o mundo é o primeiro a atacar, com os seus crimes e mortes, censuras e tabus, obscenas propostas de supremacia branca, voyeurismo, misoginia, calculismo político, entre a arquetípica Babilónia e um relutante Brexit; e ainda uma prática da literatura como feira de vaidades, com inquéritos e balanços do ano, Zeitgeist de uma competição fútil. Donde a indelével consciência de um desfasamento: «O mundo pede / que nos façamos de idiotas / pelo menos uma vez na vida. / Duas, se for mulher, / três, se tentar escrever. / Cumprira» (24); ou o entendimento de uma condição tardia, eterno retorno de um universo cristalizado, onde já tudo foi escrito e decidido, e só resta repetir: «Há muito que lhe era indiferente. O que dizia / e o que não dizia, o que mostrava e o que escondia. / Fosse o que fosse, / tê-lo-ia já lido em outro lugar, tê-lo-ia já visto / algures entre o álbum de retratos de família, / as notícias da BBC e as páginas do Pornhub» (21).
Existe, portanto, um universo calculista, denunciado pelos poemas; mas a essa violência Madalena de Castro Campos responde com outra violência, a perceção acerada que a voz enunciadora tem do seu desajuste a esse universo. O sujeito dos poemas sabe que pertence a estas referências geográficas, históricas, culturais; que não pode furtar-se ao seu tempo; simultaneamente, cada poema é a demonstração de um protesto contra essa sociedade inescapável, o ajustar de uma resistência possível. Não se reconhecendo neste mundo, mas sabendo que não pode simplesmente recusá-lo, avaliando os modos como cede à linguagem e à cosmovisão dos outros, esta voz sabe que deve reivindicar esse desajuste como identidade própria, trabalho de invenção de si.
Os poemas de Madalena de Castro Campos afinam, vez após vez, essa medida. Por exemplo, através de uma recusa das instituições, a começar pela instituição da literatura: «Davam-lhe vómitos. Todos. / Os evidentes e os obscuros, os traduzidos e os ignorados, / os premiados, os ressentidos» (6) — seria preciso citar todo o poema para esgotar as formas desta agonia. Mas a lucidez da denúncia exige que não haja simplesmente um inimigo a abater e uma forma heróica de recusar a impureza das coisas; pelo contrário, A Gun in the Garland matiza sempre essa possibilidade de maniqueísmo por uma revisão dos campos opostos: «Enojavam-na, mas / não saberia condená-los. Não havia de um lado / respeito e recato, e do outro assédio e perseguição. / Não havia o espaço de uns e o espaço dos outros, / havia a carne, o corpo e uma mesma mi- séria» (34). Nenhum protótipo do herói ou da heroína, nenhum espaço de pureza indemne: a miséria é, ainda que em campos opostos, a mesma; e a voz que enuncia estes poemas sabe que é impossível não ceder às exigências da sociedade.
Por isso A Gun in the Garland insiste num Leitmotiv, o da aceitação. Eis uma montagem não exaustiva: «Aceitaria a forma que eles lhe dessem» (9); «Aceitaria / um mundo manuseado por outras mãos» (11); «Não se propunha contrariá-lo» (24); «Pronta a fazer de conta / que concorda, quando não concorda, / que compreende, quando não compreende, / que sabe, que tem, que pode, que quer» (28); «Quem aceita o jogo, temia-o, assume como sua a punição. / Não o contestaria» (35); «No plano da palavra, / aceitava todas as que lhe dessem» (52).
Em suma, «Demoraria ainda / até que também ela / medisse o mundo / com os critérios da geração anterior» (44): a personagem destes poemas esforça-se por adiar a aceitação final, e nessa demora consiste a medida da sua coragem; mas também sabe que a resignação é só uma questão de tempo, e que os dias se definem pela cedência a forças maiores, ou pelo menos mais persuasivas.
E contudo — será mesmo assim? Esta sequência de «aceitações», repercutindo por todo o livro, não poderá materializar, pelo contrário, um autorretrato paródico, tribunal interior que permite definir com maior nitidez a medida do desajuste próprio? Um tão extenso exame das cedências ao mundo talvez seja o lugar de uma resistência irónica: quem aponta as suas próprias aceitações talvez não aceite nada, mas ponha em causa esse mesmo jogo de forças. Designar a aceitação é uma forma de a interrogar.
Eis como termina o primeiro poema do livro, parte que anuncia o todo: «Sabia-o, / mostraria o que houvesse para mostrar. / Talvez estivesse a ser usada, mas queria crer / que ela mesma usava aqueles que a liam. // Não conhecia, em literatura, outro fim, outra estratégia ou outra moral» (5). Se um dos Leitmotive de A Gun in the Garland é o verbo «aceitar», outro é o verbo «mostrar»; ambos são ativos, e correspondem a decisões ponderadas da personagem enunciadora; mas, enquanto «aceitar» parece ser o resultado de uma resistência que colapsou, «mostrar» inaugura um trabalho de criação pessoal, uma escolha inventiva. Mais importante do que isso, esta personagem hesita, questiona-se: ela é usada, ou usa os seus leitores? É vista, ou dá-se a ver? Decide aquilo que mostra, aquilo que esconde? E o que os outros vêem — vêem-no contra ela, ou graças a ela? Não haverá, em todo o livro, respostas certas para estas perguntas; mas começamos logo por saber, pelo menos, que não existe «em literatura, outro fim, outra estratégia ou outra moral».
É pouco? É o suficiente para salvaguardar a lucidez, a consciência de uma resistência, de uma ação viável. Pois, esclarecidas as recusas necessárias e as aceitações inevitáveis, resta a possibilidade de uma ação, cautelosamente interrogada. Um poema de A Gun in the Garland repete o título de uma performance de Joseph Beuys em 1964: «Das Schweigen von Marcel Duchamp wird überbewertet» (27); isto é, o silêncio de Marcel Duchamp está sobrevalorizado. Interroga-se assim o facto de Duchamp abandonar a criação artística nas últimas décadas da sua vida; para Beuys, pelo contrário, é necessário criar contra esse silêncio, agir artística e politicamente. Como se posiciona Madalena de Castro Campos neste debate? Os poemas demonstram a limitação da poesia como resistência, mas essa demonstração é uma resistência em si própria; e, por mais que a protagonista declare aceitar o mundo tal como ele é, essas afirmações constituem um gesto corrosivo, que coloca tudo em causa.
Não há uma resposta única em A Gun in the Garland; a sequência de revisões irónicas nunca permite suspender o jogo da suspeita. Decerto muitas vezes sobra apenas um saldo desencantado: «Sem para nem porquê, / a escrita talvez fosse uma forma aceitável de não existir. / Não pediria outra» (37); de outras vezes, ressurge uma possibilidade de resistência: «Não bastava ser pública, / era preciso ser política. E não / bastava ser política, era preciso ser rude / e estar preparada para perder. / […] // Talvez a revolução pudesse ser / uma forma do belo, / e o engagement não exactamente / uma falta de talento» (53). Num jogo de suspeitas, de dúvidas acesas, não há uma síntese única. Mas a força destes poemas não consistirá na suspensão de todas as certezas, engagement último e supremamente vigilante?
Pedro Eiras
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«Prontos, já passou o Furacão, agora vêm os Cruzeiros.»