folha #011

2 de Outubro de 2019

José Manuel de Vasconcelos assina uma recensão sobre o livro A Pessoa Indicada, de José Viale Moutinho (Companhia das Ilhas, 2018), na revista Colóquio-Letras,da Fundação Calouste Gulbenkian, no seu n.º202, de Set.-Dez. 2019. Na “folha” #010 publicámos o texto de Maria do Céu Fraga sobre Poesia I (1916-1940), de Vitorino Nemésio (Companhia das Ilhas/ Imprensa Nacional, 2018) e na próxima “folha” sairá o texto de Pedro Eiras sobre A Gun in the Garland, de Madalena de Castro Campos (Companhia das Ilhas, 2019) – todas estas recensões integram o mesmo número da Colóquio-Letras. Transcrição, com a “devida vénia” ao autor e à revista, do texto de José Manuel de Vasconcelos.

José Viale Moutinho (Funchal, 1945), cuja extensa obra se distribui por vários géneros (romance, conto, poesia, ensaio, prosa etnográfica), e que vem cultivando desde há muito um valioso labor de organização de colectâneas de literatura oral e tradicional, para além do seu trabalho como jornalista, publica mais um livro de poemas, intitulado A Pessoa Indicada. A sua actividade jornalística e, sobretudo, o interesse que tem demonstrado pela etnologia e antropologia terão certamente ajudado a intensificar a atenção aos ambientes sociais, bem como à própria paisagem física nas suas incidências nos comportamentos e modos de pensar e de sentir. De um modo indirecto, mas nem por isso despiciendo, tal interesse atravessa toda a sua obra literária e está patente em alguns dos poemas deste livro, que parecem ter sido escritos sob o signo da curiosidade e da atenção a momentos concretos de vida e a reflexões que surgem do confronto com eles. Não será por acaso que a epígrafe do livro, um verso de Guillevic, nos fala precisamente da escrita como algo que procura abrir portas. E o poeta será a «pessoa indicada» para o fazer. Esta simbólica abertura, que permite a passagem para outros espaços, pode ser desequilibrante, acentuar a instabilidade e a insegurança e promover a agitação, mas, afinal, não é isso que a poesia pretende?

Os 86 poemas do livro não têm título, ocupando cada um deles uma página, o que indicia uma continuidade, uma persistente meditação com múltiplas faces, onde o autobiográfico espreita amiúde. O tom do conjunto é dado logo pelo primeiro poema: uma paisagem humana, social, caracterizada por traços muito largos, um ambiente natural vagamente esboçado, mas seguramente marítimo (as menções ao mar e à ilha perpassam o livro). Na maioria dos poemas seguintes esta voluntária imprecisão está presente, embora com aproximações variáveis às realidades físicas concretas, como se os dedos do poeta manuseassem um óculo, gerando diversos graus de nitidez, mas nunca uma transparência total.

A poesia de José Viale Moutinho, tal como muitas das suas prosas narrativas, criam habilmente no leitor um sentimento de perturbação em que o real resvala para aspectos para-reais, chegando mesmo a registos sobrenaturais ou, pelo menos, a uma certa transfiguração do que nos é familiar, que encontramos, por exemplo, nos traços descritivos de uma casa vazia, aparentemente desabitada, onde se entra, e em que pesa uma atmosfera misteriosa: «o vento abre e fecha as janelas, quebra / as vidraças e arranca as cortinas e as flores» (10), embora cortada por um apontamento desviante de retorno ao imediato pessoal: «há moscas mortas no peitoril, tenho o nariz / entupido» (10). À medida que a leitura avança, se o fizermos seguindo as páginas sequencialmente, somos transportados cada vez mais para zonas de abstracção meditativa. Os primeiros poemas dão-nos breves elementos de identificação: as cheias e a onda de destruição e tragédia que comporta; a curiosidade mórbida, alimentada pelas notícias; as atribulações imaginárias de um solitário descompondo-se num centro comercial — e acentuo o verbo com a sua sintomática conjugação reflexiva, como que a dar conta dos estragos que a realidade vai provocando em quem dela se afasta, para a ver melhor, mas também porque estes poemas visam a decomposição, pelo uso de elementos dissonantes com efeitos de acentuada expressividade e mesmo de algum expressionismo —; a povoação; a ilha; o descanso no banco onde Antero se suicidou e os pensamentos que provoca; os empregados de escritório e os seus computadores que se olham da rua; a emergência da História quando se nos deparam os sinais da passagem do tempo, os vestígios do passado que revivem em nós, no presente («degrau a degrau, até as nuvens da claridade / se consomem, a cana verde é o ceptro último / de um príncipe das trevas encerrado na minha / cabeça, acena aos homens através dos meus olhos», (10); a passagem pelo hospital com os curto-circuitos mentais do ambiente; uma referência não identificada a um fuzilamento, colhida talvez numa breve notícia que se ouve; os amigos que partem definitivamente e uma reflexão sobre os modos preferidos de desaparecer («Os que se vão escondendo na terra / os que, como eu, preferem traduzir-se / em cinzas para que não haja lágrimas nem lugar / onde se possa deixar uma flor azeda», (24); uma melancólica viagem de comboio pelos campos do Douro, etc., etc. Sempre a mediação do quotidiano, mas um quotidiano desfocado, como impulso para a deambulação interior, plasmada em palavras justas que dão a esta poesia, à primeira vista de não fácil interpretação, o passe para que pouco a pouco as brumas se dissipem deixando à vista contornos de uma realidade trabalhada em permanência pela mente, e nos dão o perfil do eu que tece estes versos, às vezes rebarbativos, mas que acabam por nos trazer uma suave familiaridade, quando nos habituamos à sua respiração irregular. Com efeito, por vezes uma só palavra dá-nos uma espécie de deixa para podermos enquadrar o restante, como se um mergulhador submergisse numa vastidão desconhecida e escura e de vez em quando voltasse à superfície agitando na mão um qualquer objecto identificável. Percepção e memória são assim os dois grandes alicerces desta poesia (mas não serão afinal de toda a poesia?) e a série de poemas que compõe o livro, uma viagem pelos dias e por tudo o que os enche, sem qualquer ênfase, sem nada de pletórico, apenas como quem passa, olha e pensa o que vê, vendo-se no que pensa. Como todo o bom livro de poesia, é um livro para se ler e reler, para ir entrando como quem molha os pés nas águas vastas, antes de mergulhar.

A voz que transporta o olhar e que atravessa os poemas deste livro é uma voz embebida num cepticismo discreto, mas irredutível. Ela sabe bem que, em muitos aspectos, continuamos a ser os «velhos habitantes das grutas» (12). Sempre acompanhada pela memória (sem que se detecte nela qualquer assomo de saudosismo), fala-nos da perseverança que o estudo, a análise das coisas, pressupõe, a ponto de a realidade por vezes se vergar à consciência que ganha terreno: «Sempre que o mapa se amarrota, a terra / parece encolher, as vagas erguem-se / sob o promontório […] há quanto tempo estudo esta linha vermelha / que atravessa todos estes mapas crespos / e tomo notas azedas no papel de fumar» (18). Aqui e ali, há vagos ecos de romances populares, o que não admirará num autor que tem dedicado tanto tempo ao estudo, à compilação e divulgação da literatura oral e tradicional. Esta voz articuladora e construtiva tem o seu halo fugidio, próprio da instabilidade necessária a quem escreve. Ela interroga-se, claudica nas dúvidas inevitáveis, traz à baila, como era de esperar em quem deambula pela soturnidade dos dias, o tema da identidade, e fá-lo de um modo lapidar: «Já não sou o que parece que fui, / interroga-se o que suponho que sou / cofiando a barba, limpando os óculos, / procurando pensar em algo que não / tenha nada com isto, tomando / o segundo café da manhã, colando selos / em sobrescritos por endereçar» (25) e conclui, voltando aos abismos de si: «mas não encontro frases que sirvam / para uma conversa, articulo apenas / sombras dentro da minha cabeça» (25).

Com efeito, à medida que avançamos na leitura, a identificação vai-se tornando mais vaga, os sopros de abstracção fortalecem-se e a realidade dissipa-se cada vez mais, oferecendo-nos os poemas visões de uma mente no seu turbilhão interior, por vezes insólito, dando-nos mesmo conta de um absurdo que não se sabe muito bem onde está. O Eu que tece estes poemas não escreve para reproduzir a realidade, escreve contra a realidade.

Alguns poemas não permitem interpretações fáceis, mas não se trata de qualquer impulso hermético ou de uma obscuridade gratuita. Trata-se de uma característica intrínseca da poética de José Viale Moutinho: a natureza instável, imperfeita do que se escreve, a «abertura» permanente, a porta que se abre ininterruptamente para outras portas, para voltarmos à epígrafe. Exemplo desta escrita por vezes cerrada, mas nunca totalmente opaca, antes sugestiva, a convidar-nos para passeios na penumbra, é o poema 11, onde se fala de um bosque (já por si, espaço de indecisão e de descaminho, como tanta literatura nos ensina), onde nada se encontra verdadeiramente, porque «entre as árvores subsiste / a sombra das sombras da história» (17) ou o poema 21, onde vida e morte transcorrem num imaginário que me lembra as pinturas de Paolo Uccello, onde não falta um «anel mágico» que talvez encerre no seu brilho circular a ideia de um percurso que nos traz sempre de volta ao ponto de partida, porque a vida é um jogo no qual se perde sempre e a literatura é um jogo em que nada se ganha.

A ironia, e mesmo o sarcasmo, surge em vários poemas quando as lentes de que falava há pouco se aproximam demasiado de uma realidade tão nossa, monótona, pobre, invejosa, reles, dada pelo café, de forma não desprovida de alegorismo, onde sem escapar à sorte geral, naquela mesa solitária tão conhecida da nossa literatura (pensemos no famoso poema de Mário de Sá-Carneiro, entre tantos outros) se convoca o mundo: «vá, venham, estamos todos os dias sentados / à mesma mesa do café, protestando contra o poder, / contra a corte, promovendo os incêndios, / falando de fernando pessoa e de michel foucault, […] // e como seríamos outros se não fossemos assim» (30). O gosto pela sabedoria popular conduz o poema 28, que se estrutura como uma espécie de adivinha, mas plena de um insólito que encontramos também em várias outras composições do livro, como na 29, que não desagradaria certamente a muitos surrealistas. O sonho é no fundo um dos motores desta poesia, e mais seria se «o mapa da memória» por vezes não cortasse a fantasia, como se diz no final do poema 26. Outro motor é o sentimento da fugacidade e da inutilidade do que, por vezes, tanto se valoriza, tratados com a distância sábia e a ironia de quem pensa fundo nas coisas, nuns versos que valem por si, mesmo destacados do conjunto, como um disparo aforístico: «parece que choro e apenas experimento / a sensação de estar comovido / com qualquer coisa que depressa passa» (39).

A Pessoa Indicada é um livro desgarrado das tendências mais comuns na poesia portuguesa actual, segue um rumo muito próprio, mas seguro, de quem conhece bem os meandros do fazer poético, os efeitos possíveis quando se caminha na falsa luz do escuro. É, por isso, um livro bem literário, no sentido de estar longe de qualquer inocência simplista. A técnica que não está à vista é o cimento destes poemas, e para que o esforço construtivo fique bem claro apresentam-se versões retocadas de alguns poemas, exibem-se as variantes, como se se raspasse uma parede para deixar à vista o que a tinta cobre. A Pessoa Indicada é um dos melhores trabalhos de José Viale Moutinho e um dos grandes livros de poemas saídos no ano de 2018. Nele se alia a consciência de que realidade e literatura não passam de jogos e que, portanto, escrever é contrapor regras a regras — tudo isso no escuro, já que o poeta, como se diz num dos poemas, não consegue «ver grande coisa nas luzes».

José Manuel de Vasconcelos

Como se percebe, o Lorenzo deixou-nos vivos (parece).

Estejam atentos aos furacões.