1 de Outubro de 2019
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A revista Colóquio-Letras,da Fundação Calouste Gulbenkian, no seu n.º202, de Setembro-Dezembro de 2019, integra três recensões sobre três livros publicados pela Companhia das Ilhas em 2018 e 2019, a saber: Maria do Céu Fraga, escreve sobre Poesia I (1916-1940), de Vitorino Nemésio (edição em parceria com a Imprensa Nacional, 2018); Pedro Eiras, sobre A Gun in the Garland, de Madalena de Castro Campos (2019); José Manuel de Vasconcelos, sobre A Pessoa Indicada, de José Viale Moutinho (2018). Transcrevemos aqui, com a “devida vénia” à autora e à revista, o primeiro desses textos críticos – e nas folhas seguintes os outros dois textos.
Quando um escritor vai publicando ao longo da vida, perante cada novo livro o público habitua-se a refundir e reequacionar a imagem que formara a partir da leitura e apreciação dos livros anteriores, uma vez que a obra vai, naturalmente, infletindo num ou noutro sentido já anunciado, abordando novos temas e alterando ligeiramente alguma perspetiva que a própria vida e experiência vão amadurecendo. Com isso, insensivelmente, o leitor esquece a importância das obras iniciais, se acaso não o marcaram decisivamente, e, escondida pela arte da maturidade plena, esvanece-se a importância decisiva que assumiram na vida do poeta as suas primeiras experiências, em que muitas vezes se anunciavam já o estilo e a sensibilidade que caracterizarão tempos ou ciclos posteriores.
Esta observação cabe bem a Vitorino Nemésio e à sua poesia. O autor de Limite de Idade começou a publicar muito jovem, levado por aquele imperativo de comunicação que, para um poeta, se traduz em divulgar composições avulsas nas páginas da imprensa ou em livro, em colher opiniões e afirmar a sua relação com o mundo (ou até o seu ensimesmamento). Ainda estudante do ensino liceal, com 15 anos e a permeabilidade natural ao tom e temas típicos dos autores mais conhecidos da sua formação, publica em 1916 o seu primeiro livro, Canto Matinal. São também poemas de amor os livros seguintes: e, se há alguma candura literariamente ingénua nesses versos em que ainda transparecem os modelos do autor, já se revela a formação de um estilo pessoal, com capacidade até de autoironia.
Pouco a pouco, a imagem do jovem com sensibilidade e «talento para a expressão poética» vai-se diluindo na figura do escritor que, na sua maturidade, viu na poesia um meio de interrogação tão válido como a busca filosófica, com que se concilia, aliás. O encontro com o mundo pessoal, a procura do sentido da vida e de Deus encontram lugar e refúgio na poesia, primeiro, a partir de La voyelle promise, na recuperação das imagens da infância no mundo simples da sua Terceira natal e, posteriormente, também na vida que o rodeia e na ciência sua contemporânea. Ao nome de Vitorino Nemésio associa-se indelevelmente na literatura portuguesa à memória do escritor que percebeu que a interrogação poética atinge a ciência do seu tempo, e a complexidade da bioquímica, por exemplo, pode ser, ela também, poeticamente questionada na relação e no valor do humano. E assim, na imagem que dele se forma hoje, confluem facetas muito díspares que levaram a que, por exemplo, David Mourão-Ferreira sublinhasse a dificuldade em apontar traços que com justiça caracterizassem Vitorino Nemésio, permitindo fixar-lhe um retrato: «a dificuldade do retrato não deriva apenas da diversidade, da complexidade e da acumulação de imagens do retratado: deriva também da força íntima de cada uma delas, da exuberância do talento (porque não genialidade?) com que se têm afirmado, em Vitorino Nemésio, o poeta e o professor, o ficcionista e o crítico, o cronista, o biógrafo, o historiador e o filósofo da cultura»1.
Unificando a diversidade que o próprio correr do tempo ajuda a explicar, encontra-se uma personalidade e uma trajetória pessoal. Percorrer esse caminho, situando o poeta no seu mundo, detetando ciclos de interesses e de sensibilidade que percorrem a poesia e se espelham também na restante obra, multifacetada porque humana, habilita o leitor a compreender e integrar a poesia no conjunto da obra e a avaliar a sua unidade.
No ano em que se completaram quadro décadas sobre a morte de Vitorino Nemésio, foi lançada uma nova edição da sua «Obra Completa», empreendida agora em parceria da Imprensa Nacional-Casa da Moeda e da Companhia das Ilhas, com direção editorial do filólogo e nemesiano bem conhecido Luiz Fagundes Duarte. Poesia I (1916-1940) é o primeiro de quatro volumes de poesia anunciados e dá bem conta da importância deste percurso biográfico que toma como fio condutor. No seu interior, demarcam-se ainda dois grupos, que correspondem também a dois ciclos que encontram em La voyelle promise (1935) um marco de separação: «Poesia (1916-1930)» e «Poesia (1935‑1940)».
Assim, em cerca de 100 páginas, correspondentes a aproximadamente um terço do volume, apresentam-se os poemas editados por Nemésio entre 1916 e 1930. Uns reunidos e publicados pelo autor em livro, outros já conhecidos, mas que Fagundes Duarte recolheu dos jornais e revistas em que tinham sido avulsamente publicados, apresentando-os agora reunidos sob o título «Poemas Dispersos». Neste grupo, em que se respeita a ordem cronológica de publicação, encontra-se ainda o poema «Versos Qu’o Pai Que Foi p’ò Trabalho
Fez à Sua Filha», que, não obstante ter vindo a público postumamente, em 1979, data de 1922 e retoma aqui o seu lugar. Os livros reunidos nesta primeira parte englobam, pois, poemas de juventude ou, pelo menos, do que se dirá ser um primeiro ciclo da vida literária do autor: Canto Matinal (1916), A Fala das Quatro Flores (1920), Nave Etérea (1922) e Sonetos para Libertar um Estado de Espírito Inferior, publicado em 1930 em separata da Presença e, finalmente, «Poemas Dispersos».
Nemésio havia de considerar estes versos, anteriores a La voyelle promise, obras menores de juventude, «nugae», como fizeram Petrarca ou, antes dele, Catulo, e tantos outros; mas não os renegou nem esqueceu o valor que inegavelmente têm e, considerando-os significativos no seu percurso, viu neles passos naturais de aprendizagem, necessários para a explicação do seu mundo e da criação sua linguagem poética.
A segunda parte deste volume encerra poemas de uma fase de maturidade, manifesta nos livros publicados entre 1935 e 1940: La voyelle promise (1935), O Bicho Harmonioso (1938), Eu, Comovido a Oeste (1940). A ligação que existe entre os três livros foi sublinhada pelo próprio Nemésio quando, já em 1961, os reuniu e publicou sob o título Poesia (1935-1940), e compreende-se não só pela rutura que marcam em relação aos livros anteriores, como também, e sobretudo, pela unidade que têm entre si, não obstante no primeiro deles Nemésio ter optado por escrever em francês.
Para um escritor com ambições literárias, poetar em francês representaria a integração e apropriação de um universo que despontava no horizonte como Terra Prometida — não interpreta Martins Garcia2 a poesia nemesiana desta trilogia, e em particular o título La voyelle promise como expansão do mito particularizando afetivamente, no caso do açoriano desterrado, como tentativa de vislumbrar e conquistar a ilha perdida que se reinventa através da poesia e da palavra?
O culminar desta segunda parte do volume encontra-se certamente em Eu, Comovido a Oeste, livro em que o próprio poeta, professor filosófica e poeticamente bem informado, considerou desenhar-se «o que se possa chamar o [seu] pensamento poético, com os temas coerentes e reiterados da busca do sentido da existência pela representação do passado: o mundo da infância no microcosmo da ilha» (121-122).
A anteceder esta «Poesia 1935-1940», Luiz Fagundes Duarte incluiu o prefácio que Nemésio, instado pela editora de então, a Moraes, lhe apusera. Nele encontra-se a justificação que autoriza o critério cronológico seguido, e, ao mesmo tempo, uma peça fundamental para a compreensão do significado da poesia para Nemésio e para a análise da sua obra. E, de facto, estas páginas ensaísticas encontram justificação num livro que se quer de versos. Não só porque o autor assim procedeu em vida, ou por, como Fagundes Duarte sublinha também, constituírem «a melhor reflexão que alguma vez terá sido feita sobre a poesia de Vitorino Nemésio» (10), mas, sobretudo, pela atitude manifestada pelo escritor ao longo da sua exposição, ao arrepio das vozes da crítica mais corrente na época, que anunciava já a «morte do autor» a proclamar por Barthes anos depois. Nemésio assume-se não como crítico imparcial, mas antes como poeta, como autor que testemunha sobre a sua obra com a autoridade e o conhecimento que legitimam a explicação de um sentido intencional (a ligação entre a motivação biográfica e a criação é constante na interpretação de Nemésio e um título como Quase Que os Vi Viver condensa bem o valor que lhe atribui). Ao mesmo tempo aceita, e valoriza, a subjetividade que, afinal, está presente em cada crítico e transparece na relação estabelecida com a própria linguagem. Naturalmente, ao longo da exposição, Nemésio conduz o leitor com a clarividência, mas também a paixão que a sua cultura e os conhecimentos interiorizados das áreas dos estudos literários e filosóficos lhe proporcionavam.
Ter-se-á, portanto, como justificada a organização da publicação da «Obra completa de Vitorino Nemésio» em dezassete volumes, respeitando, por um lado, a diferenciação entre «poesia», «teatro e ficção», «crónica e diário» e «ensaio» e, por outro, a ordem cronológica. Mais ainda, acentuam-se os benefícios dessa ordenação que facilita a reconstituição de uma «trajetória poética» do autor.
Os mesmos critérios norteavam já a edição anterior, da Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Agora, nesta parceria editorial em que as ilhas açorianas se envolvem também, tratou-se de fazer uma edição «destinada a um público vasto», que dispensará certamente alguns pormenores do aparato crítico antes apresentado, mas procura um texto fiável e alguns esclarecimentos ou sugestões que possam guiar a leitura (são nesse sentido preciosas as anotações ao poema «Versos Qu’o Pai Que Foi p’ò Trabalho Fez à Sua Filha», por exemplo). E, se a edição já era merecedora de elogio, também merece referência o facto de nela se verem envolvidas gentes dos Açores que encontram em Nemésio uma referência próxima e procuram tornar mais acessível e atraente a obra que querem divulgar.
Maria do Céu Fraga
NOTAS
1 David Mourão-Ferreira, «Para o Perfil de Vitorino Nemésio», in António C. Lucas (coord.), Críticas sobre Vitorino Nemésio, Lisboa, Livraria Bertrand, 1974.
2 José Martins Garcia, Vitorino Nemésio: A Obra e o Homem, Lisboa, Editora Arcádia, 1978.

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En attendant Lorenzo / Waiting for Lorenzo.
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Amanhã saberemos se estamos vivos.