Yuck Factor e Romance da Última Cruzada
Ana Vitorino e Carlos Costa
Em Yuck Factor uma equipa de quatro elementos movimenta-se pela cozinha e pelos diferentes eventos; um conjunto de regras, comentários e informações q.b. são enunciados. O texto (espectáculo) é uma viagem pelo paradoxo omnívoro: um assunto muito individual, do foro privado, complexo, e que mexe com as pessoas de uma forma imprevisível, constantemente bombardeadas com informações alarmantes, contraditórias, acerca do que devemos ou não comer. No quotidiano, é-nos servido constantemente um enigma dentro de um puzzle envolto numa adivinha: compara-se a perigosidade da ingestão de enchidos com o acto de fumar, estabelecem-se limites de doses diárias para nos podermos sentir seguros, difundem o alerta vermelho da relação da cor da carne com o cancro para, logo de seguida, nos dizerem que o nosso consumo de peixe é altamente prejudicial, e apontado como um problema ambiental. Acabou-se a garfada sem culpa.
Com Romance da Última Cruzada, aborda-se a memória individual e colectiva, e como esta é condicionada pelas histórias biográficas. O ponto de partida e de convergência é uma fotografia: «a de um soldado caído em circunstâncias desconhecidas, um homem que parece lançar um apelo dramático a quem pousar nele o olhar.» Quem é aquele homem? O que tem para partilhar? Durante este Romance… os três intérpretes procuram desvendar a verdade, histórica ou não, recorrendo a uma viagem-narrativa envolta em caminhos sinuosos e desconhecidos, com longos saltos temporais, terras distantes, momentos verosímeis e ficcionais, com soldados, Deuses, Reis, tudo em modo compressão e sem redenção. Uma experiência única, portanto.
Ana Vitorino e Carlos Costa, “escritores de palco”, são directores artísticos do Visões Úteis. Este projecto de artes performativas de origem teatral, criado em 1994 e com sede no Porto, tem características únicas na criação artística no nosso país e é um caso raro de longevidade e vitalidade no panorama teatral português.
Excerto
OMNÍVORO SECUNDÁRIO – O que é que estás a comer?
OMNÍVORO PRIMÁRIO (olhando a comida) – Sei lá! (continua a comer)
OMNÍVORO SECUNDÁRIO – Estás a comer uma coisa que não sabes o que é? Sabes como é que isto é feito? Obrigam o bicho a comer, a comer, a comer, até ele já não se conseguir mexer e o fígado inchar e rebentar! Só tu é que comias isso!
O OMNÍVORO PRIMÁRIO oferece outro prato ao OMNÍVORO SECUNDÁRIO e continua a comer.
OMNÍVORO SECUNDÁRIO (recusando a comida) – E isto, sabes de onde é que isto vem? Sabes o que se passa nesse país?
A miséria, a exploração dos trabalhadores? Tu não vês as notícias? Isto se calhar até foi apanhado por escravos, percebes?
O OMNÍVORO PRIMÁRIO oferece outro prato ao OMNÍVORO SECUNDÁRIO e continua a comer.
OMNÍVORO SECUNDÁRIO (recusando a comida) – E isto aqui? Isto nem sequer é comida! É tudo sintético, tudo processado, não vês?
O OMNÍVORO PRIMÁRIO oferece outro prato ao OMNÍVORO SECUNDÁRIO e continua a comer.
OMNÍVORO SECUNDÁRIO (recusando a comida) – Não te faz impressão? Isto aqui nem teve tempo de crescer, são bebés, podes estar a dizimar a espécie! Não queres saber, é? Não te pesa na consciência?
O OMNÍVORO PRIMÁRIO repara que o KOALA terminou a sua última folha e fica a olhar para ele.
O OMNÍVORO SECUNDÁRIO sai indignado e sem ter comido nada.
Nota de leitura