Vitorino Nemésio. À Luz do Verbo
José Martins Garcia
Obra de síntese do ensaísmo nemesiano de Martins Garcia, congregando temas já tratados, antecipando mesmo investigações futuras e aqui apenas afloradas. É a obra de um ensaísta que admira o texto de que se ocupa e se entrega a um trabalho de análise atento e “legível”, e ainda um sinal de respeito pelo autor e pelos seus leitores.
Excerto
«A biografia é uma velha ciência que raro se deu por tal.» – escreveu Vitorino Nemésio, no ensaio “Anto é Só”, em Conhecimento de Poesia, Baía, 1958, pág. 117. Se Nemésio afirmou que a biografia é uma ciência – para mais “uma velha ciência” –, é porque tinha sólidos argumentos para chegar a essa conclusão. Argumentos de natureza teórica – a sua erudição inclina-nos nesse sentido – e argumentos colhidos na prática: o biógrafo de Herculano, de Gomes Leal, de Bocage, de Moniz Barreto, etc revela-nos um notável domínio do material biografável. Nemésio dispõe de um método de biografar subjacente ao estilo romanesco que por vezes impõe às suas páginas de biografia. Nesse campo, qualquer dispersão é aparência; qualquer vestígio romanesco, simples exercício da imaginação…
Vitorino Nemésio era muito mais ordenado, organizado, do que supunha o profanum vulgus. Torna-se portanto tarefa algo perturbadora redigir uma nota biográfica acerca dum escritor que nessa matéria deu lições verdadeiramente exemplares.
A ideia de que o Homem é essencialmente linguagem – mesmo que represente uma concepção exagerada, sectária ou distorcida – marcou uma época, esteou um método, impôs um tipo de abordagem, detectou estruturas, ofuscou a “personalidade” do criador. O biógrafo, em matéria de análise literária, cedeu lugar ao desmontador de oposições estruturais, superficiais ou profundas. Por outro lado, a obra literária, se internamente ainda se pode valorizar com base na tessitura que lhe dá corpus, tem sido sujeita a um bombardeamento de raiz políticosociológica que tende a reduzi-la a simples reflexo das forças produtivas e à inserção na luta de classes – o que anula o selo individual que a obra transporta. Mas estamos em crer que um facto singelo permanece, aquém ou além da proliferação dos métodos analíticos e dos critérios selectivos da história da literatura: a pergunta interessada do leitor. A pergunta que, perante este livro, poderá ser: Mas quem foi afinal Vitorino Nemésio?
Foi perante esta verosímil e legítima curiosidade que resolvemos redigir as páginas que se seguem (quanto à análise da obra, ela ocupará a maior parte deste livro). Sem nos abalançarmos a algo que mereça o nome de “científico”… longe disso! Apenas no intuito de apresentarmos um esboço do Homem na sua relação com o tempo que lhe foi dado viver.
Nota de leitura