Teatro (in)completo. Volume III
Carlos J. Pessoa
Neste volume de Teatro (In)completo, reflicto sobre o peso do passado, de como o passado determina o que fazemos. Se do passado recolhemos certezas, para mim são sobretudo as incertezas, o desvanecimento, as questões e os balanços, que prevalecem, sob pena do passado se tornar uma gaiola que aprisiona o pássaro da liberdade.
O que poderia ter feito e o que fiz, ou não fiz, são linhas que se cruzam. Deste modo falar de teatro incompleto é verdadeiro, ou pelo menos, inspirador, para continuar a entender o teatro como pensamento. Pensamento e discurso que se afectam, que se revelam um no outro. Ora destoando, ora convocando, ora iludindo uma ideia, de certeza ou de verdade; e nessa mancha indistinta, o sublinhar do debate, do diálogo, da conversa inacabada.
Só posso falar objectivamente sobre os textos presentes neste volume, com pequenos lances, algumas pistas, algumas referencias que ajudarão, ou não, o leitor à medida que for progredindo na desocultação do teatro contido nas palavras. A leitura destes textos é uma interpretação e uma invenção, um campo aberto para o leitor, onde subsiste teatro à espera de ser acabado, ou melhor dito, prosseguido.
Assim de relance, como quem fotografa com o olhar da mão, sem ajuda dos olhos, digo, sobre O Pai: Estrela 60, um teatrinho ali junto da Basílica da Estrela, já desaparecido. Digo também, Manuel João Gomes, crítico de teatro, que sempre disse mal do meu teatro, detestando-o mesmo, mas que se foi despedir, sem que o tivesse percebido, de mim e da Garagem de então, com uma longa e amável conversa; como se detestar o Teatro de Garagem pudesse ter sido mais um sopro de vida, antes da morte anunciada, algumas semanas mais tarde.
Sobre Mudanças, digo Isabel de Castro; essa actriz única, sempre bela em todas as idades. Conto ainda: um cão ladrava no espaço ao ar livre onde fazíamos o espectáculo no Citemor, Festival de Teatro ainda activo. Que fazer com o cão? Pedir ao dono que o tirasse dali? “Nem pensar!” Disse a Isabel, “O cão já cá estava, tu é que estás a invadir a casa dele.” Muito bem, mas assim, com o público, ficamos com o espectáculo estragado. O cão vai ladrar. “Não vai ladrar.” E de facto não ladrou. Como é que sabias Isabel? “Não sabia. Não tem nada que saber, dei-lhe Valdispert…” (tranquilizante natural à base de plantas).
Sobre Ernesto, também no Citemor, uma planície imensa, os actores a uns bons 500 metros da plateia lotada, imensa plateia, a caminhada lenta dos actores, o José Topa, e o José Peixoto, até chegarem à fala. Digo: Ernesto Melo Antunes, um cavalo livre, sem arreios, galopando na planície.
Sobre o Pavilhão dos Náufragos, digo os deserdados, os infelizes, os tristes, os feridos de morte; e a beleza de dar a mão, a tua mão. Digo a morte mais comovente que encenei quando o Dentista, o Marco Delgado, soltava a pistola após o suicídio; esta caía sobre um quadrado de madeira de balsa, que se quebrava libertando penugem branca; o Dentista caía de seguida, lentamente, e já com a cabeça deitada no chão, um tubo discreto no palco libertava leite, que se espalhava como sangue, um sangue de anjo.
Por fim sobre (In) submissão, digo tecnologia, fomos pioneiros em utilização de vídeo intermedial, hoje uma coisa vulgar. Na altura vários caixotes/computadores, ligados em rede, para enviar imagens que interagiam com os sons produzidos em cena. Abrimos em apoteose na estreia no Teatro São João, do Porto, com a janela do Windows a estragar tudo e a deixar-me à beira de um colapso.
É assim, a glória efémera do teatro; aprendemos a nunca nos levarmos demasiado a sério e a acreditar que vale a pena, que o futuro é voltar ao princípio e continuar.
Carlos J Pessoa
Abóboda, Segunda-feira, 11 de Dezembro de 2023
Disponível para Livrarias e para Venda directa. Pedidos para: companhiadasilhas.lda@gmail.com
Excerto
No Pavilhão dos Náufragos estão reunidos todos aqueles de quem a memória guardou lembrança e que ainda vivem nos nossos corações. As circunstâncias excepcionais da vida de cada um determinam que nem todos os náufragos tenham sequer visto o mar; o seu naufrágio e posterior recolhimento no pavilhão, está mais relacionado com uma interpretação poética dos factos das suas vidas que propriamente com acontecimentos marítimos.
ACENDEDORA DE VELAS ─ Há quem tenha chorado uma só vez na vida, há até quem nunca tenha chorado, há quem tenha o mar nos olhos, há palavras eloquentes que remetem para uma triste sina mas há também quem tenha caminhado sobre as águas e até quem tenha amado envolto no lençol das ondas! Que as margens da memória possam recolher todos os náufragos, que o nosso coração possa ir em seu socorro e a chama da eternidade se mantenha viva.
VELHINHA ─ Dama Wei, não devia andar assim descalça, ainda se constipa! Doutor!…
DENTISTA ─ Marfim.
VELHINHA ─ O quê, doutor?
DENTISTA ─ Tenho o coração da selva na cabeça. Não quero ver luz. Pára… caí num campo de urtigas, envinagraram-me as pernas! Uma bola de borracha não pára de saltar. O tio veio da Guiné, da selva, trouxe um robe chinês. Cinco escudos e uma maçã, é quanto basta para partir para a guerra!
DAMA WEI (faz caligrafia chinesa numa grande folha de papel) ─ A força do braço deve ser precisa, a mão leve segue o impulso; dedos acutilantes determinam a feição, o braço distende-se; pousa na almofada. Sorriste? Não, não tenhas receio, não te quero fazer mal! Assim, repete comigo o gesto; sopra bambu, faz o fogo… a sombra da raposa, agora amassa côdeas de pão, treina os dedos, isso… rápido! O gesto e a intenção; a intenção de absoluto do calígrafo, do dizer pleno, teórico-prático, marca o ritmo e a força do gesto; o jogo psicológico turva a legibilidade da escrita que se torna uma espécie de expressão espiritual, bela, flagrante, palpitante e ilegível.
(…)
Nota de leitura