Teatro e Ficção I
Vitorino Nemésio
Amor de Nunca Mais | Paço do Milhafre | O Mistério do Paço do Milhafre
Publicado o primeiro volume da série de Poesia da nova edição da Obra Completa de Vitorino Nemésio – Poesia (1916-1940) –, segue-se agora o primeiro da série Teatro e Ficção – Amor de Nunca Mais, teatro, e Paço do Milhafre e O Mistério do Paço do Milhafre, contos –, onde o leitor encontrará, pela primeira vez e a beirar um século sobre a sua composição, a única peça de teatro escrita por Nemésio, em 1920. Ao mesmo tempo, o leitor poderá acompanhar a evolução da escrita do autor no género conto, seguindo o processo de metamorfose ocorrido entre Paço de Milhafre (1924) e O Mistério do Paço do Milhafre (1949), obras maiores no contexto da ficção do autor e da literatura portuguesa do século XX, mas praticamente esquecidas do grande público.
OBRA COMPLETA DE VITORINO NEMÉSIO – Parceria Companhia das Ilhas – Imprensa Nacional. Direcção Literária de Luiz Fagundes Duarte
A Obra Completa de Vitorino Nemésio é destinada a um público vasto, em que cada volume é revisto e apresentado por um especialista na matéria. A Companhia das Ilhas e a Imprensa Nacional dão assim um contributo decisivo para a divulgação e o conhecimento da obra de um dos escritores que ficará para a história da literatura portuguesa do século xx: Vitorino Nemésio.
Excerto
«(…) Ê bem reparei num prosa que stava a jogar às cartas na mesa a pé de mim e nã tirava os olhos da minha Cunsuelo, a quem já tinha atirado algũas baldas certas, coma quem a conhecia de ginjeira. Mãis, sempre procatado, pra nã forver em pouca (i)auga (que o boi im terra alheia nem vaca é!), em vez de me dar por achado disse mãis foi à rapariga que, se le agradava mais a cumpanhia do marmanjo — amigo não impata amigo nem soldado pertuguês puta espanhola — fosse lá ter co ele. Desfez-se logo em credos e em miras, por Diós! — mãis com tal gana de dentro, com tanta bergüenza (como eles dízim), que se pôs toda vormelha, e, diente da minha teimosia em desimbaraçar o campo ò oitro, viero-le as lágrimas òs olhos e disse (ê cá nã falo espanhol, mãis nunca mais me esqueceu!):
«— Si no le gusto, me marcho… Pero le quiero… le quiero mucho, portuguesito!»
— Ah, conho! A minha vuntade foi dar-le ali mesmo um beijo, e não era o promeiro que se desse naquela tarde, ali na fonda. Mãis o diabo da muchacha, dezendo-me aquilho a mim, que nã tinha eira nem beira e era pior que um desertor, deu-me logo cos pés no coração. E eu, que inté ali tinha stado a pé dũa mulher de porta aberta, dali por diente tomei-lhe um rospeito que, maior, só o que tenho à minha Estrudes. Alambrei-me antão, no meio daquela fraqueza, que tinha arrecadada na bolsa ũa medalhinha de prata, da Senhora dos Milhaigres da Sarreta, que minha Mãe me tinha dado na vespra do imbarque, na cidade. Era a única galanteria que tinha comigo, além de ser coisa benta. Puxei da bolsa, e, tamém de olhos vidrados, mãis disfarçando a coisa cá co estes meus dé-reis de proa, estindi-lhe a medalhinha na ponta dos dedos, e disse-le:
«— Tome lá este arrelique, e, se le prèguntarem quem foi que lo deu, diga que foi o sòldado mais duro e mai’ ruim que de Elvas passou a Badajoz…»
— Ela riu-se munto, vormelha como ũa brasa, e pregou a medalhinha no seio. Mal ela tinha acabado de acertar o alfenete, qando oiço o prosa da ilharga, o da jogatina, que durante estes nossos feitios nã tirava os olhos da gente, sempre mal incarado e mitidiço:
«— Mira, Consuelo! Es Virgen?»
«Ah, rapazes! Se quereis ver o que é um espanhol cheio de sãingue c’um murro naquele focinho, era só irdes à Calha de las Fuentes e porde-vos a par de Mateus, im pé no mei’ da fonda…
O pimpão ficou-me estindido ò cumprido dum banco, que ê dei-le a sigurar e ele nã cuntava co aquilho assim tã de rumpante: truque, três-seis. Mãis o pior é que a espanholada toda caiu em riba de mim e do Antonico Rato, que jogava bem ò pau e, c’um sarrafo na mão, tinha aquela canalha em rospeito. A Cunsuelo puxou-me polas abas da jaca cá pra fora, pà rua, e vendo-me perseguido plo marmãinjo da graçola, que, de ventas a escorrer sãingue, se tinha posto im pé e avançava pra mim de navalhão aberto, tirou da liga (que perna!) um cuchilho de ponta e mola, um palminho de casco de tataruga invergado, que parecia um pente de luxo, e gritou àquele cracamano que, se desse mais um passo, le mandava aquilho à barriga. E é que mandava, mesmo a dez metros de distância!, que me disse dipois, que, desde pechinchinha, se intretinha a fazer ponto co a faca da cozinha à porta do quintal da avó… (…)
“Quatro Prisões Debaixo de Armas”
Nota de leitura