Retratos Imperfeitos
Luiz Fagundes Duarte
Mais do que imperfeitos, os retratos que aqui deixo assemelham-se àqueles retratos à la minuta que se fazia antigamente, antes da era digital, para o bilhete de identidade ou para o passaporte: o resultado nunca era o que se esperava, e na verdade nunca fazia justiça ao retratado. Por isso, raramente eram guardados nos álbuns de fotografias. Porém, bons ou maus, eles traziam a marca do tempo – da tecnologia disponível e da arte do fotógrafo.
Escritos entre 1984 e 2015, os textos que aqui se reúnem não foram pensados para um dia virem a integrar um livro: na verdade, eles foram escritos soltamente, e soltos foram sendo publicados ou de alguma maneira apresentados ao público – como recensões críticas em jornal, entrevistas, prefácios ou posfácios a livros, apresentações para catálogos de exposições, discursos formais e falas informais em actos de homenagem, elegias a amigos desaparecidos, votos parlamentares de pesar – com as diferenças de registo que as pessoas, os objectos e as circunstâncias, bem como o meu envolvimento afectivo e a minha própria maturidade, permitiram.
Nenhum mal viria ao mundo se eu deixasse ficar estes textos nos loca amœna onde até agora jaziam e a que originalmente se destinaram; porém, não tanto pelo meu mérito – que se resume a eu ter estado no momento certo com a pessoa certa –, mas pelo valor daquilo que na sequência do meu fortuito acto de escrita terá sido possível revelar acerca de cada uma das personalidades de quem aqui falo, achei que deveria exumá-los e, sob a forma de livro, trazê-los a um público mais alargado que também será, tendo em conta a passagem do tempo – e nessa medida estes retratos imperfeitos tornam-se mais-que-perfeitos –, um público novo. [Luiz Fagundes Duarte]
Leite de Vasconcelos, Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro, Jorge Amado, Ernesto Guerra da Cal, Vitorino Nemésio, António Dacosta, Ruy Cinatti, Celso Cunha, Lindley Cintra, Marquesa de Jácome Correia, Raul de Carvalho, Pedro Da Silveira, Fernando Vieira, Natália Correia, Dias de Melo, Olga Gonçalves, Maria Ondina Braga, Emanuel Félix, Daniel de Sá, David de Almeida, Rui Duarte Rodrigues são os “retratados”.
Excerto
OS MARES DO SUL E AS ILHAS DO NORTE
Diz o Ruy: Já tinha lido os livros de Alain Gerbault, e todos os livros que faziam parte da sua biblioteca de bordo, e que era tudo referente aos mares do Sul, porque eram ilhas edénicas, com mulheres lindíssimas, nadadores esplêndidos que mergulhavam em busca de pérolas, etc. Todo aquele sonho me dominou, e acabei por ir para Timor, que era uma ilha dos mares do Sul e ao mesmo tempo era portuguesa. Percorri todo o Timor, sofreado pelo governador que queria era que eu tratasse de papéis, mas eu em vez de tratar de papéis fazia colecção de plantas, de bichos…
E a seguir? Tasmânia, Austrália, Japão (onde a minha experiência, além da de fitogeógrafo, se pode ler na Madame Chrysanthème de Pierre Loti, embora com a devida distância), Singapura, Hong-Kong, Macau, Tailândia: Na Tailândia, perdi a cabeça, principalmente por ver os gatos siameses todos enlameados naqueles canais onde só se vendem flores; eu não simpatizava muito com os gatos siameses, porque os que eu via cá em Portugal eram todos uns ramelosos, e ali vi o castigo; estavam cheios de lama, e eu gozava com aquilo, era a minha pequena vingança em relação às pessoas que gostavam muito de gatos siameses…
Regresso a Timor; depois, Oxford, de onde percorreu de novo toda a Inglaterra, Escócia e País de Gales, visitando os sítios dos poetas e novelistas: Walter Scott, Robert Burns, Wordswarth, etc. Em Oxford passavam-se coisas: Eu vivia num quarto que tinha sido ocupado por Dylan Thomas, o grande poeta galês, e era um sítio onde havia aparições: abria-se a porta, entravam pedrinhas pelo quarto adentro…
Nota de leitura