Políptico
R. Lino
Durante cerca de trinta anos, os cinco livros que constituem este Políptico desenharam uma arquitectura cujos extremos, ladeando Atlas Paralelo, Paisagens de Além Tejo e Mapas, foram Palavras do Imperador Hadriano e Daquīra.
No seu conjunto, estes livros atravessam portas, de ocultação ou desvendamento, que respiram nos nossos passos: em Palavras do Imperador Hadriano, as de Roma; em Daquīra, as da civilização arábico-andaluza; em Atlas Paralelo, Paisagens de Além Tejo e Mapas, as de outros ângulos da nossa contemporaneidade.
Quiseram os tempos (de escrita e de edição) que o livro Mapas não tivesse sido publicado antes de Daquīra e que, por isso, a sua composição me fosse acompanhando ao longo de três décadas.
Quando Carlos Alberto Machado me falou na hipótese de publicar, na Companhia das Ilhas, os cinco livros num único volume (os quatro que já tinham sido editados e o que ainda não fora publicado), fui lançada – através dessa sugestão que caiu em mim como um raio benfazejo – num convívio inquieto e difícil com os livros.
Esse mergulho começou por trazer-me o título sob o qual se abrigariam e fez-me ver quanto de vaidade poderia esconder-se na simetria da sua relação inicial.
Mapas aparece, pois, no fim deste Políptico não por ser essa a sequência temporal da publicação dos livros, mas porque será esse, agora, o seu lugar mais exacto.
Nos poemas já publicados, rectifiquei lapsos de edição, corrigi erros e alterei algumas decisões tomadas. Dos textos que, então, os acompanhavam, mantive apenas o que achei necessário a esta sua nova vida. [r. lino]
Excerto
Fica-se , às vezes, entre o medo e as promessas
à beira das paisagens à espreita.
Uma transparência leva-nos agarrados
a pequenas impressões por epopeias
de pequenas descobertas. Das palavras que dizem
quais as que impedem? Uma brecha
pode abrir-se sorrateira por um tempo de neblinas
mundos marcados que se tornam
por onde nos demarcamos atenções.
Pode ser um tecto, uma cadeira, um corpo
que se imprevista, uma estrada mais vereda…
Porque se insiste? A procura
leva-nos à procura e os governos impelem-nos
por uma fúria rodeada de rigores.
Assim se procurasse
o ruído dos pássaros
afastado pelas árvores, alguma
fruta caída no chão, as mangas
das camisas arregaçadas até novos horizontes.
Nada é mais importante
quando se acredita que por linhas
semelhantes os ecos se reproduzem:
sons que nenhum telefone acende
com uma urgência que é a mesma…
Nota de leitura
Em todos os poemas as questões essenciais são o “sentimento da paisagem” e a “epopeia”. Mas “paisagem” aqui significa antes de mais um tempo, uma geografia e não tanto uma propensão descritiva ou um elogio da natureza. Porque as “epopeias” podem ser grandiosas mas também podem ser mínimas: a mundividência de uma época, mais do que uma crónica de factos e feitos. Revisitando a Roma de Adriano e Antínoo, a civilização antiga, histórica, que conhecemos dos livros, a poetisa tem, sobretudo, em conta o famoso romance de Yourcenar, ou seja, uma ficção da verdade. “Entre os dados de um tempo e a reinvenção de uma experiência”, escreve R. Lino, de modo que as personagens históricas e as personagens literárias absorvem o “eu” dos poemas, gerando uma espécie de “anonimato” (aspecto acentuado pela elisão do nome próprio da autora, o nome que identifica o género). Solenes e intimistas, as elegias de Adriano contrapõem a ideia de Império e de imortalidade à vivência concreta da fugacidade, da finitude. E de um caso identificado, situado, chega-se a uma meditação abstracta, intemporal. Nenhum dos livros seguintes é tão pungente e tão rigoroso como “Palavras do Imperador Hadriano”, mas todos se querem “fábulas extremas” em torno de lugares bem determinados e de episódios às vezes nebulosos. Em “Daquīra” (que significa “tesouro”) é a civilização arábico-andaluza que é convocada, a partir de traduções e de reescritas. Lino nasceu em Évora, e estas canções do sul não se confundem com exotismos gratuitos, uma vez que a paisagem em causa faz parte da nossa herança, mesmo quando esquecida ou adormecida. E compreendemos que o enquadramento “histórico”, colectivo, ancestral, contempla todas as situações humanas, de outrora e de agora, autobiográficas ou não, que R. Lino vai sugerindo com bom gosto e cuidado.
Pedro Mexia, revista E do jornal Expresso, 21 de Janeiro de 2017.