Poesia, Um Dia (2012-2022)

Jaime Rocha (coord.)

«Esta antologia, com os poetas que participaram nas residências literárias da Foz do Cobrão nos últimos onze anos, é ilustrativa da entrega, da criatividade e da paixão que eles dedicaram ao Poesia, Um Dia. É uma dádiva.»

Jaime Rocha, coordenador.

POESIA, UM DIA (2012-2022)

Ana Paula Inácio
António Poppe
Carlos Alberto Machado
Catarina Barros
Hélia Correia
Catarina Nunes de Almeida
Cláudia R. Sampaio
Francisca Camelo
Henrique Manuel Bento Fialho
Inês Dias
Jaime Rocha
José Anjos
José Luís Costa
José Mário Silva
M. Parissy
Margarida Ferra
Margarida Vale de Gato
Marta Chaves
Miguel Cardoso
Miguel-Manso
Rita Taborda Duarte
Paulo Campos de Reis
Pedro Teixeira Neves
Rosalina Marshall
Rui Caeiro
Sandra Costa
Vasco Gato
Vergílio Alberto Vieira

 

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Excerto

Mãe Cargaleiro

I
A mãe corta retalhos da paisagem
e cose-os uns aos outros, sendo que há
por ali um critério indecifrável
e não sabemos bem para o que olhamos.
Pois aquilo que corre está imóvel,
por exemplo, a água que essa mãe
com um gesto deteve e que, parecendo
cair, não cai.
Tornado vidro
o leito daquele rio,
como por acção de uma temperatura,
um vidro doce, ainda iluminado
pelo verão que entrou nele,
um vidro azul, malhado pelo frio
que o quis atravessar
e fracassou.

II
Antes de tudo, esteve a mãe, com terra
presa nas rugas, quase a ponto de
deixar que se confunda o seu sorriso
com a dilatação da sementeira.
Nas depressões da pele, como por leitos
completamente secos, alojaram-se
plantas arrebatadas do seu solo,
inteiramente sós,
plantas do tempo.
Acaso não sabemos
que há raízes nas mães, que todo o drama
se reduz ao arranque, a tudo o que
partiu um corpo em dois — e isso é
nascer?
O que pode fazer essa amputada
se não cortar, cortar e recoser,
até que o saldo seja a seu favor
e a criança aprenda, não aquilo
que está na natureza,
mas a beleza imensa da
desordem,
do trabalho feroz da mãe que não
amou jamais nem horta
nem valado,
nem animal deitado aos pés.
Não ama
nem os festejos,
nem as invernias,
ama somente o filho e tudo aquilo
que lhe pode ensinar,
isto é, lançar a praga
e a tesoura,
e uma espécie de método que leva
a que tudo se ajuste e se detenha
na vertical.
Pois é como se ali
se operasse o sinistro,
o viramento,
o perigoso gesto da mulher
a que engravida e que por isso tem
a possibilidade de parar
todos os corrimentos naturais, prendendo-os em tecido, sim,
prendendo-os pelo cruzar da agulha,
a bênção invertida,
a teimosia
de deitar sal em tudo,
fascinando.

III
Entre os seus dedos a tesoura canta,
como os lobos,
cortando.
Há muita melodia para os sons.
A tesoura e o lobo são iguais
no desajeitamento.
Com as lâminas e as fauces
cantam. Cantam
enquanto dilaceram,
enquanto o sangue
e o rasgão que são a mesma coisa
compõem uma nova geografia,
marcando um centro,
aniquilando os bichos
e o tracejado dos proprietários.
É o que se ouve, à noite,
além do vento, estando o vento
paralisado sobre as chaminés:
a tesoura e o uivo,
o lobo e a mãe,
separando,
comendo devagar,
deitando brilho e desperdício em volta,
tudo o que testemunha um esventramento.

IV
A criança que nasce dessa mãe —
a que tem, na cozinha, junto ao pão,
os molhos de paisagem como as outras
têm fruta espalhada e alguidares,
— essa criança, como poderia
afastar-se de vez?
Como pode ela
tomar outro alimento que não seja
o da cor arrancada à serrania?
Eis que a criança cola, traço a traço,
tudo o que a sua mãe colava outrora,
sob a canção do lobo
e da tesoura.
Ela não sabe o que começa ali,
brinca, mastiga,
ordena os seus fragmentos,
desfaz e recompõe,
peça por peça.
Ainda tem os pés descalços,
ainda ouve
as instruções que a aldeia
lhe vai dando.

 

Hélia Correia, Foz do Cobrão, Abril de 2012

Nota de leitura

Ficha Técnica

ISBN: 978-989-9154-03-2

Dimensões: 13×18cm

Nº páginas: 214

Ano: 2023

Nº Edição: 291

Colecção: Poesia, Um Dia #005

Género: Poesia

PVP: 16 €

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