Os infinitos modos da palavra
João Barrento
Caminhos e metamorfoses da poesia portuguesa contemporânea
«A linguagem secreta e discreta da poesia tende a dizer (tem de dizer?) o que outros géneros tantas vezes rejeitam. O poema é como um relógio de sol em cujo quadrante se podem ler as mais leves oscilações do tempo e dos tempos, as vibrações anímicas de um sujeito e as zonas de sombra e luz de uma visão da História. Também na poesia portuguesa que aqui se percorre, desde meados do século XX, os modos próprios da expressão pessoal se vão acastelando no nosso horizonte de leitura para configurar um tempo. Um tempo que, no que se refere à sua projecção no poema, tanto pode corresponder a um tempo histórico bem definido como remeter para uma atmosfera epocal mais difusa, ou mesmo apenas para aquele «lusco-fusco da consciência» de que fala o Livro do Desassossego.» [João Barrento]
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Excerto
A poesia (portuguesa) em tempos de indigência?
A poesia não escapa às contigências do tempo, e a sua recepção e o seu lugar relativo estão desde logo condicionados, como a literatura ou a cultura em geral, pelo perfil civilizacional e os interesses de uma época. Esta reflexão começou por se referir à literatura portuguesa em geral, e ao seu papel progressivamente reduzido no «mundo da vida» do início deste século, mas não deixa de ter o seu lugar num livro sobre a nossa poesia contemporânea.
Os parêntesis envolvendo a palavra «portuguesa» no meu título são, ao mesmo tempo, fronteira do local e ponte para o global. Isto significa que o limite dos sentidos da actual crise do literário, da transmissão e da presença (não) actuante da literatura e em particular da poesia, tanto pode ser confirmado ao nível da crescente in-significância da literatura nacional como esteio de uma consciência nacional (coisa que é hoje quase um anacronismo), como pelo fenómeno da progressiva diluição do literário na configuração global do estado do mundo e do movimento das consciências.
O primeiro destes sintomas é hoje marcado por uma existência sem memória, o segundo explica-se pela predominância dos paradigmas economicistas, pragmáticos e vivenciais. A escala do mundo define-se hoje por dois parâmetros que se opõem e se completam em cada indivíduo: o movimento das Bolsas (o único lugar onde a vida se rege ainda por «valores») e as vivências do corpo (quase só valorizado na sua dimensão estética e hedonista). O simbólico e a letra, que se alimentam do equilíbrio aberto e instável entre os sentidos e a ideia, saem a perder na arena social e cultural delimitada e dominada por estes dois marcos. […]
Nota de leitura