O Rapto
Dimas Simas Lopes
Prefácio de José Guilherme Reis Leite
Posfácio de João de Melo
Espécie de saga familiar sem o ser, inscrita no tempo longo de mais de um século e presidida pela figura tutelar de Maria Carmina – cuja vida testemunha e atravessa seis gerações de parentesco insular – eis em suma o arco e a seta deste romance. O narrador é, ele próprio, uma criação e uma epifania de vozes. Nós, leitores, somos parte da rede dessa malha familiar e mundana, que se tece por escrito de baixo para cima, do tempo histórico para o contemporâneo, através de relações de sangue, amores concertados e seus contrários. Multiplicam-se vidas, casos, episódios, páginas biografadas de um sem-número de homens e mulheres, pertencentes ou não ao tronco do clã, e que ora se dispersam ora se perfilam em descendências e ramos parentais que conferem número e expressão às personagens da obra.
A vida contada neste livro não é só uma narrativa prodigiosa e imaginativa; assume-se como meditação culta, uma longa filosofia, um pensamento contínuo, modos e artes de pertencer ao mundo temporal da terra e do ser. Muito se vive e se morre na intimidade destas páginas; muito se sonha e escreve ao redor de um rapto por amor que nos cativa também na sua teia de enredos e de boa literatura. Somos leitores da festa e da alegria desta escrita. Na força expressiva da linguagem, celebramos o dom literário e o talento de um escritor de histórias que merece culto, de agora até ao futuro histórico das nossas letras. Saúdo em Dimas Simas Lopes a voz plural e única de um escritor que se guinda à altura dos nossos melhores prosadores.
João de Melo (do posfácio)
Excerto
É fêmea, senhor Antonico, rica menina, a primeira menina da criação da Donana, chegou ao mundo num choro pegado, a chorar para a vida, chora-se ao nascer e na vida, com pena de morrer, é uma obra de arte uma criança, que eu ajudo a nascer com estas mãos, e que sorte, sã e escorreita, em casa com eira e boa beira, quando uma criatura chega a este mundo, não escolhe o lugar de nascer nem escolhe o pai e a mãe e não sabe, que o primeiro dia, é o primeiro do princípio do fim, para mim que já vi muito nascer e muito morrer, duas aventuras de contar, senhor Antonico, parece-me bem mais custosa e maior a aventura de nascer, ao nascer todos são iguais, depois é o que a gente vê, dizia toda suada e vermelha a Rosa parteira, que enchendo o folgo continua, como das outras vezes, e se não me falha a cabeça, com este são seis partos com todos bem vivos, e a senhora portou-se bem, em tudo é uma senhora, até a parir é uma senhora, estou ciente do que digo, nestes braços já aparei muitos meninos do lugar quente de muitas mães, até dá gosto aparar uma cria da matriz da Donana Alexandrina, as que são senhoras, não precisam dizer que o são. Defronte do oratório, Antonico, parecendo calmo, fez que sim à Rosa e sorriu.
Nota de leitura