O Quarto do Pai
Maria Brandão
Entre a realidade e o delírio, a memória e a ficção, a gravidade e o humor, o presente e o passado, a reflexão e o retrato do tempo, O Quarto do Pai é uma expedição ao labirinto da vida de um homem singular. Um homem caprichoso e exigente, aproveitador dos prazeres mundanos, obcecado pelas suas paixões e pela sua família, preso numa urdidura cruel que lhe rouba a dignidade e o suga para o abismo. Esmurrado, mas não vencido, sob o efeito de drogas instigadoras de grandes alterações de consciência, resiste tenazmente ao mais óbvio dos destinos e toma o comando de uma narrativa reveladora do mais íntimo de si.
Excerto
São dez e meia da noite, horas de dormir, anunciam-me, apagando a luz sem me perguntar a opinião. Fico sem norte no quarto escuro, o corpo encolhido na cama articulada, o tronco soerguido por duas ou três almofadas, as pernas entaladas por outras tantas, as mãos impedidas de alcançar a algália, o viscoelástico a moldar-me os ossos e as peles, a entrar por mim acima. Ao meu lado esquerdo, um dos meus filhos, não sei bem qual, ajeita-se no cadeirão para passar a noite comigo, temperar-me a insónia com copos de água e conversas triviais, aliviar-me as dores com mudanças de posição ou comprimidos, aturar-me os delírios com desconcerto ou presença de espírito, conforme a hora e o feitio. Por entre a neblina na minha cabeça, enfraquecida pela idade e entorpecida pelo uso regular de opiáceos, consigo perceber-lhes no tom de voz o amor, a preocupação, a ansiedade e a impaciência e sei sempre quando ultrapasso o limite. São os três doces e firmes como os chocolates que o meu neto mais velho me manda da Suíça e entristece-me que não possam pernoitar mais vezes, coisa justificada pelo efeito negativo da privação de sono nas suas vidas. A minha mulher escusa-se com o mesmo argumento, válido, no caso dela, por ter quase tantos anos como eu, e, embora ofendido com a situação, não tenho alternativa a não ser aguentar os tipos musculados e resistentes contratados para zelar pela minha agitação nocturna e prestar-me a assistência possível. Não que tenha alguma coisa contra eles, nada disso. São bons homens, afáveis, profissionais experientes, habituados a lidar com corpos sem préstimo como o meu. Tratam-me sem cerimónia ou delicadeza, massajando com mãos de ferro as poucas carnes que me restam, cobrindo-as com cremes e óleos medicinais para activar a circulação e prevenir lesões, justificam-se, respondendo ao meu lamento de animal ferido. Aceito contrariado os procedimentos técnicos e as palavras optimistas. Sou caprichoso, exigente e avesso a intimidades com desconhecidos e só a presença da minha família me alumia.
Nota de leitura