O Papel Pardo da Utopia
Fernando Mora Ramos
Este conjunto de textos tem uma origem, o PREC. É, à letra e no que ficciona, filtrado pelo tempo e pelo enviesado humor que pratica, mea culpa, matéria a circular por dentro, intersticial, de uma nova sociedade que se tenta diariamente, libertos do fascismo — o que fizemos não havia, foi necessário inventar, da profissão aos reportórios, as pessoas, da estrutura de acção aos compromissos com o poder emergente, a própria arte face ao desgaste de um momento que era história em aceleração exponencial, o ritmo das transformações radicais surpreendia os próprios sujeitos da transformação.
(…) O olhar que nos textos prevalece é o de muitos anos depois. Um olhar que o tempo filtrou e que converteu o que foi épico em algo pícaro e objectivo. Como se Cervantes tivesse ali também metido o seu carro de cómicos. Na realidade estes textos surgem porque nunca partiram, foram aparecendo à medida que um balanço nostálgico e futurante tomou a forma destes escritos que misturam tudo, creio, crónica do tempo, pura ficção com incursões num terra-a-terra que ganha corpo de metáfora, reflexão sobre o que o teatro possa ser, elogio dos fazedores e dos destinatários, crítica das estruturas de conformação, retrato da distância entre os do cimo e os de baixo.
F.M.R.
Excerto
LENINE
O Lenine [João Lenine, electricista do Centro Cultural de Évora] suicidou-se. Atirou-se de um terceiro andar. O nome não lhe valeu. Se fosse Jesus, ressuscitava, de esparramado no chão. Problemas familiares, nunca soube. Falava pouco. Numa época em que os fusíveis mandavam tudo, a tarefa de um electricista, vanguarda do olhar sobre as realidades imediatas e curtos-circuitos potenciais — concreto, camarada, no concreto — era iluminar a tarefa. E depois o objecto que dela resultava.
O Lenine era um tipo porreiro, afável, mas o drama que não lhe conhecíamos adormecia-lhe a produtividade, ressonava de modo motorizado, vinha-lhe uma espécie de apneia de dia. Várias vezes o vi e mais ao Egas Manuel Pais Moniz — esse mesmo, que resolvia tudo com um atamancanso penso rápido, logo não desisto — a fazer uma sesta no camarim sala de fumo, entre pilhas de busca-pólos, fio de cobre, fichas triplas, lâmpadas fodidas, cabos de pontas esventradas mais lanternas de bolso.
A malta das tomadas sempre foi diferente — genética cultural —, corre-lhes nas veias a electrificação pós-Outubro, a corrente que trouxe, muito depois de 24, a emancipação abortada — na altura grandes feitos, depois gorros e frontispícios humanos de medalhas douradas nas amuradas, heróis em grosas
deles e paradas militares, meio passo de ganso.
Esteve pouco tempo connosco. Tinham-no empregado ali, as forças vivas.
O Lenine mandou-se de um terceiro andar. Um homem que tinha sobrevivido a todos os choques de 220 V. Não fora o Tarzan [alcunha de João Carlos Marques, técnico de luz do CCE e Director Técnico do Centro Dramático de Évora] a tomar as rédeas da luz e tínhamos blackout para uma quarentena.
Adeus, Lenine.
Nota de leitura