O papel de prata, o reflexo e outros contos pelo meio
Nuno Dempster
São 12 histórias curtas do poeta Nuno Dempster. O autor diversifica-se em assuntos que vão desde o hedonismo de um patrício romano ao destino de um casal de heroinómanos, revelando do homem não só uma visão irónica, às vezes próxima da derrisão, mas também de solidariedade e de exemplo do que é vertical, em que a ironia não cabe.
Excerto
A solidão desse homem atraía-a, tinha vontade de ir ter com ele, perguntar-lhe porque vive só? Posso cuidar da sua roupa, gostaria muito de cuidar da sua roupa. Se tivesse o número do telemóvel, ligar-lhe-ia: não precisa de alguém para tratar da roupa? Mirava-se no espelho do guarda-vestidos – era uma mulher esguia, sem defeito – e percorria com as mãos, devagar, os seios, o ventre, a face interna das coxas, a luxúria, eu cuido da roupa, eu cuido da roupa, murmurava, oh, meu Deus, concede-me a roupa dele, faz-me feliz, e desejava-o até a confusão do orgasmo lhe tomar conta da cabeça, para no fim se perguntar seria amor dar-se assim toda? Um desperdício, responderiam muitos. Mas era, claro que era amor, e sentia-se cada vez mais submetida pela paixão.
[Jack]
Nota de leitura
Pequenas narrativas ficcionais do poeta açoriano com a característica envolvência da memória e do passado a que já nos habituou a sua escrita, em particular os seus poemas, aqui com uma ironia no olhar com que são revelados alguns destinos humanos.
[Adolfo Luxúria Canibal, Correio da Manhã/Domingo]