O Mar de Ludovico
Carlos Alberto Machado
Ludovico, até aos dez anos teve uma infância feliz. Mas, um certo dia, quando adejava entre palrar de adultos, rendas, doces, sumos e torradinhas, estremeceu todo por dentro: a sua tia Donatella berrou-lhe ao ouvido direito, com voz rasgada e estridente, “o menininho não quer mais torradinhas?” – e o tímpano de Vico rebentou, espichou sangue e depois desmaiou entre as pernas fedorentas da tia. Ao fim de três dias imerso em coma profundo, Vico embasbacou a família com as suas primeiras palavras: “quero ficar só para o resto da minha vida.”
E ficou.
O Mar de Ludovico é a história deste homem retirado do mundo, dos seus dias, recostado entre almofadas grandes e macias.
Excerto
Um deslize. Desprezível. Coisa breve no desfiar do tempo. Depois, as consequências. Para toda a vida. Recorda: tinha dez anos, uma infância feliz. Menino-prodígio, génio do cálculo matemático e das línguas. Donatella, a sua tia centenária, estava em visita primaveril. Família junta no jardim da casa. Vico, era esse o seu petit nom, não brincava. Os olhos repousados nas voltas dos desenhos da toalha bordada da mesa de chá. Vico!, berrou-lhe ao ouvido direito, com voz rasgada e estridente, a tia Donatella, o menininho não quer mais torradinhas? O menino que adejava entre palrar de adultos, rendas, doces, sumos e torradinhas, estremeceu todo por dentro. Como não conhecia o significado de uma sensação tão forte, não reagiu. A tia Donatella continuava a berrar-lhe ao ouvido, enquanto brandia uma torradinha entre os dedos que escorriam manteiga. E o tímpano de Vico rebentou, espichou sangue, e o menino desmaiou entre as pernas fedorentas da tia.
Nota de leitura