O Livro dos Anjos
Mário T Cabral
OBRAS DE MÁRIO T CABRAL
Com pintura do Autor
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(…) Os primeiros poemas de O Livro dos Anjos (…) foram escritos ainda em 1989, quando o autor deixou Lisboa e regressou aos Açores. Deveriam integrar outro livro – Via Sacra – Poemas Místicos – mas, aos poucos, emanciparam-se e tornaram-se um projecto autónomo.
Em 1998, isto é, nove anos depois, estava terminada a primeira versão, já de si vista e revista, escrita e rescrita. Mário foi sempre o oposto do poeta espontâneo, arrebatado, sentimental; era racional, cristão, porém grego, apolíneo, que pondera, traça, esculpe, em busca da beleza ou da verdade.
A versão derradeira, que encontra nas páginas que se seguem, seria terminada a 13 de Julho de 2017, a quatro semanas da morte. Tinham passado 28 anos desde a redacção do primeiro verso, mais de metade da vida do Mário, toda a carreira profissional e quase toda a vida literária.
Que aconteceu a estes poemas ao longo desses 28 anos? Mudaram, várias vezes. Transfiguraram-se, numas ocasiões complexificaram-se, noutras simplificaram-se, viveram, envelheceram. Como o próprio livro diz e no contexto de um tema caro ao autor, “um jardim nunca está pronto”.
O mesmo com estes poemas. Nunca estiveram completos nem terminados. Cessam aqui porque cessou a mão que os escrevia, completam-se por impossibilidade de serem mais. Não houve um momento em que tivessem sido melhores nem piores; foram, como as árvores ou as flores, de acordo com a estação da vida, a destreza e a energia do jardineiro. Conheceram várias reencarnações e terminam nestas. São as que o público conhecerá. (…) Nas suas notas no fim do século, o autor definia-o como “um livro religioso, que descreve a morte física do Eu e a ressurreição metafísica do Espírito Santo ou Logos”. Mas a versão de então não o era tanto como a derradeira. Afinal, como se lê nos poemas actuais, o anjo “sabe vinte anos antes o que venho a saber”, “Estou com eles no futuro à minha espera”.
Olha por nós, Mário. Há tanto para ler e compreender.
Alexandre Borges (do Prefácio)
Excerto
Minha Mãe o viu sobre o berço e gritou
Benzeu-se a casa e o varão recém-nascido
Depois do primogénito morto, três raparigas.
Já era tarde para atalhar o rapto inefável
Ela mesma foi apanhada pelo anjo apanhado
Só agora eu sei como ele usou a boca dela:
«— És sacerdote para sempre, Melquisedec.
Teu corpo está trancado para além da Lei.»
Ela entregou-me a Maria, meu nome da pia.
Deu-me dedal por escudo, caneta por lançadeira
«— Vai urdindo e depurando. Não perguntes.
Quando dele deres conta já a meio da viagem».
Nota de leitura