OBRAS II: O GRANDE CIDADÃO

Virgílio Martinho

Segundo volume das Obras de Virgílio Martinho

Texto precedido de O MEU VIRGÍLIO, por Vitor Silva Tavares, e, em jeito de posfácio, A MINHA PROFISSÃO, por Virgílio Martinho

Nota biográfica e Notícia bibliográfica de Carlos Alberto Machado

O GRANDE CIDADÃO é um romance de aventuras. O seu herói chama-se Alquimista pela simples razão de que, em criança, entre os seus companheiros de rua, se gabava de poder fabricar moeda de ouro. Mas ele não é de ouro nem de prata – é um criminoso susceptível de ser condenado por qualquer código penal. O livro passa-se numa cidade imaginária onde a abjecção se tomou a moral comum. Talvez por este motivo flagrante o Alquimista, ao sair da penitenciária após vinte anos, verificou que encontrara uma outra cidade, mais vasta e complexa – onde todos os gestos humanos tinham de ser convencionais e o
futuro, tal como o presente, sinónimo obrigatório de ideologia ou morte. Era uma cidade aterrorizada.
Mas o romance é ficção, não se passa em lado algum, embora a história seja antiga e se processe onde vive o homem que perdeu a coragem para resistir e salvaguardar os seus valores originais. Devia tratar, ou trata, se acaso o consegui, de um tema simples como as pessoas podem ser reduzidas à condição de animais. Como, entre essa população
mutilada, podem existir homens que emergem libertos e decididos a correr os maiores riscos, por leis que, além de misteriosas, são inexoráveis. Mas não é um livro messiânico, não é um livro político, embora se fale dos que podem salvar, dos que morrem, dos que mentem, dos que monopolizam o poder, dos que traem, sendo homens, os seus irmãos, regra geral distraídos e ingénuos. E na cidade esboçada no livro nada resta aos cidadãos, as suas vidas foram sujeitas, por um pequeno ou descomunal artifício, à sedução mais completa. Se é neste extremo que nos encontramos, ou nos podemos encontrar em dado momento, é lógico supor que os seres foram transformados em peças de um complexo e monstruoso sistema, que é afinal, paradoxalmente, o deles. Porque eles, os seres de O Grande Cidadão, ajudaram-no a erguer-se, alimentaram-no, e são incapazes de não se corromperem numa atmosfera onde tudo é corrupção.
Se o livro é imaginário, os seus ingredientes são fidedignos. É apenas uma crónica, um relato das aventuras de um fora-da-lei constitucional, da sua mãe, da velha e gorda ex-prostituta Mamã, de Benvinda, de Heliodoro, o homem dito positivo mas inquieto, de Salomão e das suas ideias de fraternidade, por fim de desespero, também de Agripina, a cartomante. E todos eles, que respiram entre monstros actuantes ou inertes, resistem, tentam, acabam por morrer danados. Mas que resta às pessoas, quando as insultam, senão a raiva? O Alquimista sobrevive. Esta sobrevivência é para mim, suposto habitante dessa cidade, a continuação do mistério magnífico que é o homem.
Não é um livro neo-realista, deve estar longe do “novo-romance”. Mas que é um livro neo-realista? o que é um “novo-romance”? De facto, o que será um livro? Seja como for, em O Grande Cidadão, a vida e a morte estão rarefeitas, erradas, inquinadas de raiz, a existência é caricatural, o Homem pode ser impunemente estropiado pelo outro homem. Para isso existe a máquina exterminadora de que a História nos dá testemunhos e exemplos sem conta.

Virgílio Martinho ― excerto de uma entrevista concedida ao Jornal de Letras, Artes e Ideias, em 15 de Maio de 1963.

Excerto

I
Cá fora, para o Alquimista, as ruas da cidade eram outra vez ruas, e o sol, apesar do Inverno, depois de vinte anos, outra maneira de sol, como a tarde, outra maneira de tarde; outra maneira de respirar, outra maneira de luz, tudo conjugado, em paz dentro dele para significar, após o portão da penitenciária, para sentir-se livre, para admirar, para reconhecer. Entrou no Grande Parque e aqui, entre árvores, no meio das crianças, outra vez outra maneira de tudo, com a liberdade de estar livre, mesmo com o menino de cabelos escorridos, a falar-lhe e a chorar, também a perguntar-lhe:
— Viu a minha bola? — sem deixar de chorar, sem deixar de incomodar.
— Não vi, não vi — respondeu o Alquimista.
— Perdi a minha bola — tornou a dizer o menino, ainda a chorar.
— Roubaram-na os polícias — disse o ex-prisioneiro a brincar, sem compreender porque brincava.
O guarda do parque vinha interrogativo, com a bola na mão.
— É um polícia? — perguntou o menino, parando de chorar.
E correu para o lado oposto donde vinha o guarda, novamente a chorar e a gritar que lhe tinham roubado a bola. Mas que importância tem esta acusação numa grande cidade?

[…]

Nota de leitura

Ficha Técnica

ISBN: 978-989-9007-80-2

Dimensões: 14x22cm

Nº páginas: 290

Ano: 2022, Agosto

Edição: # 276

Colecção Obras de Virgílio Martinho #002

Género: Ficção

PVP: 18 €

Autor