O fardo do homem branco
Madalena de Castro Campos
O livro de estreia de Madalena de Castro Campos apresenta-nos uma poesia de raiz feminista, mas que recusa os lugares-comuns da poesia comprometida ou da poesia “feminina”. Prefere uma postura iconoclasta e provocadora, que se constrói com rigor de escrita ao mesmo tempo que interpela a própria ideia de poesia.
Excerto
Comem-lhe da mão,
cheiram-lhe a saia, lambem-lhe
os sapatos.
Iriam mais longe, se ela abrisse as pernas.
Mas contentam-se com pouco.
Trezentos exemplares,
uma fêmea que finja ter-lhes lido os versos,
o nome no jornal de dois em dois anos.
Precoces e curtos, apesar de famintos.
[Os poetas]
Nota de leitura
A violência verbal, explícita e assumida, é aqui parte de um projecto de escrita que, num mesmo gesto, pretende chocar e seduzir. Uma sedução provocadora, a um tempo descarada e púdica, de quem mostra o que tem porque não parece acreditar que, de facto, o possua. Que o possua, ou que se possua a si mesma o suficiente.
[Blogue Contra Mundum Crítica]
Subjaz […] uma conexão entre todos os poemas de O Fardo do Homem Branco, a denúncia por vezes violenta da vida em tribo, que se manifesta ora por desdém e sarcasmo: “Ele elogiou-lhe a profundidade da escrita. / Não respondeu. Primeiro, / não se vendia por uns elogios. Segundo, / não sabia de que profundidade ele falava. / Se da sua cona, se da sua própria penetração. / Quanto a esta, / ela mantinha as dúvidas.”; ora por ironia ácida que me fez sorrir em Os Poetas (ler na imagem acima), ironia que também aparece em A Rapariga da Caixa. Desta vez, contudo, obrigou-me a meditar no parco destino das empregadas de supermercado, um poema bastante cénico, que tem algo do Teatro do Absurdo. Há também a denúncia da abjecção social em grau extremo, igualmente passível de uma cena daquele conceito de teatro, talvez o poema mais violento do livro: “Empurrou a porta das mulheres, / (…) sentou-se na sanita. / (…) ajoelhou-se junto do cesto do lixo. / Papel higiénico ainda húmido, pensos manchados, / tampões. Levava à boca e sugava. // Ninguém o viu sair.”
[…] A violência da denúncia e a secura atravessam o livro como um sofrimento oculto, e a possibilidade de uma palavra com um pouco de calor seria viável no contexto de só um poema. Mas esse calor não surge, nunca surge. Também esta particularidade da poesia de MCC me remete mais uma vez para o Teatro, o que só tem a ver comigo mesmo, com o fundo cultural que me forma e não com qualquer influência. Refiro-me à lembrança que guardo das peças de Sarah Kane a que assisti, em que não se busca salvação, mas se relata e denuncia a perda dela. Tudo tem de ser assim, violento, por causa do fardo do homem branco e não como programa. É uma forma nova, escancarada de revolta e de acusação da sociedade, além de testemunho inequívoco do tempo que vivemos.
[…] O Fardo do Homem Branco é uma estreia notável, além de exemplo único, quanto sei, entre a velha, a menos velha e a jovem poesia portuguesa.
[Nuno Dempster, blogue A Esquerda da Vírgula, em 25 de Fevereiro de 2013]