O Concerto das Buzinas / O Menino Novo
Virgílio Martinho
Em O Concerto das Buzinas (1976) Virgílio Martinho relata a sua experiência de 1949-1950 na prisão do Aljube, em Lisboa. «Virgílio Martinho, autor na periferia e no prolongamento do breve e tardio Surrealismo português, aborda neste romance o tema do universo concentracionário durante a ditadura salazarista. E fá-lo utilizando uma linguagem que nada tem a ver com o que da lição surrealista permanece vital ao nível dum sumptuoso (e por vezes rebuscado) culto do onírico. Fá-lo com a consciência desassombrada de quem utiliza a literatura como forma de testemunho nitidamente histórico e pessoal.»
[ Álvaro Manuel Machado, Colóquio-Letras, 1976
Em O Menino Novo (1989), reconhece-se [o] carácter claramente ‘realista’ ou o sentido e consciência de que o paraíso perdido da sua infância pôde ser reconstruído pelos fios da memória, pouco complacente e nada interessada em suavizar com outras cores o que foi da sua angústia de menino pobre, nado e criado em tempos bem cinzentos e tristes, na lembrança que sempre perdura de um pai ferroviário e da mãe às voltas com os problemas da casa, enfim, um quadro social e humano igual a tantos outros, mas que Virgílio Martinho soube recriar de forma admirável e pujante [nestas] belíssimas histórias […].»
[ Serafim Ferreira
OBRAS DE VIRGÍLIO MARTINHO (em publicação)
# Volume I [Novembro de 2021]
FESTA PÚBLICA | ORLANDO EM TRÍPTICO E AVENTURAS |
RAINHAS CLÁUDIAS AO DOMINGO
# Volume II [Agosto de 2022]
O GRANDE CIDADÃO
# Volume III [Junho de 2023]
RELÓGIO DE CUCO | A CAÇA
# Volume IV [Maio de 2024]
O CONCERTO DAS BUZINAS | O MENINO NOVO
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Excerto
A sala de prisão tem trinta e seis passos por doze de extensão, uma retrete e dois anexos: um grande e outro pequeno. É neste que dormem Passão e Graça. Passão está meio surdo e de vez em quando urina sangue. Graça tem a voz entaramelada e nem sempre encontra as palavras ajustadas para exprimir o que pensa; mas está a recuperar, já consegue ler uma coluna do jornal sem que esta se transforme numa ilegível mancha negra.
O anexo grande é um cubo que fica enterrado em relação às traseiras da prisão, um beco onde vive gente e há roupa a secar nas varandas. Daqui vem a voz feminina que canta desafinada e leva o preso Dimítrio a masturbar-se na retrete. A voz entra pelo postigo gradeado e espalha-se por toda a sala. Emílio, sempre deitado no seu bailique, ouve-a também. Emílio foi pendurado pelos pés e levou reguadas nos ouvidos. Uma após outra, a cada oscilação do seu corpo. Por isso tem os nervos estropiados e sofre de vertigens. Goza, porém, dum privilégio: pode estar deitado de dia e de noite. O mesmo acontece a Dionísio, embora por outras razões.
Dionísio tem a pele negra e esteve muitos anos nas penitenciárias dos EUA Agora está nesta sala e tudo o que faz é dormir vinte e quatro horas por dia. É um velho.
A sua cabeça toda branca atesta-o. E talvez esteja senil, ou farto de tudo. Vai à retrete e não repara que ensopa os pés descalços no mijo que há em volta da pia turca, que depois imprime as suas grandes pegadas no soalho quando regressa ao bailique; e como enxuga os pés molhados na manta com que se tapa acaba por cheirar mal. Mas nesta prisão não há só o seu cheiro, cheira também a creolina, a percevejos mortos, ao suor dos presos. (…)
Nota de leitura