O amanhã não existe – Inquietação insular e figuração satírica em José Martins Garcia
Urbano Bettencourt
Esta obra tem como origem a Dissertação de Urbano Bettencourt apresentada à Universidade dos Açores em 2013, com vista à obtenção do grau de doutor em Estudos Portugueses. Nela se aborda a inquietação insular e a sátira na narrativa de Martins Garcia, considerando a sua particular expressão e a articulação de ambas com determinada representação do tempo e do espaço insulares, que têm uma presença de relevo na sua ficção. A opção por estas duas linhas de análise representa ainda o seguimento de alguns posicionamentos de Martins Garcia, na sua qualidade de escritor, mas também enquanto ensaísta: o trabalho analítico e crítico por ele consagrado à literatura açoriana, sob a perspectiva da açorianidade literária, fornece propostas de leitura que podem igualmente ser aplicadas ao estudo da obra do autor – e, quanto a esta, foi ele próprio a reclamar para si o estatuto de autor satírico.
Excerto
A narrativa «Alecrim, alecrim aos molhos» constrói-se em torno de um motivo frequente em Martins Garcia, o da vida em quartos de aluguer, exíguos, degradantes e sinal da baixa condição social das personagens (neste caso, é também a do narrador). Pelos elementos referenciais, os acontecimentos decorrem ainda no universo insular (o do Faial, mais precisamente), situado já à distância do momento da narração, «num tempo de caverna e numa latitude de exílio» (1974a: 22). O grotesco funciona, neste contexto, mas igualmente noutros, como forma de exprimir, e exprimir impressivamente, o desconforto e o desenraizamento, mas sobretudo a impossibilidade de se viver com dignidade numa situação de penúria, de privação das condições mínimas de vida, numa situação de ausência de liberdade e de submissão aos poderosos (aqui representados pela figura da «Mãe»). Se o grotesco constitui um meio de assinalar o que existe e não devia existir, então ele assume-se, no interior do domínio satírico, como um factor de denúncia
e crítica das instituições que contribuem para a degradação do homem, para o seu aviltamento.
A animalidade, enquanto forma de instaurar o grotesco, pode operar ainda por outros meios, pela insistência no pormenor dos traços deformantes do retrato da personagem e também pelas transposições de sentido e pelas analogias que suportam retoricamente a metáfora e a comparação.
[CAPÍTULO 3 – OS MODOS DA SÁTIRA, pág. 199]
Nota de leitura