Navegações e outras Errâncias
Luís Mesquita de Melo
Sete personagens que procuravam um autor… surgem-nos nestas narrativas distintas permeadas de uma profunda unidade: o mar, a ânsia de partir, o desejo de ficar, a busca de um não sei quê, a sedução da viagem, a inquieta sede de algo diferente do quotidiano.
Este livro é um portento. Agarra o estilo e a voz narradora revelados nas melhores páginas de A Humidade dos Dias e consegue sustentá-los sempre em alto registo, com momentos de rara beleza.
Não conheço nas letras dos Açores (nem de Portugal, posso acrescentar) nada que se lhe pareça; nenhuma obra em que o mar tenha uma presença tão central, se exceptuarmos a História Trágico-Marítima e a escrita da baleação de Dias de Melo e Nuno Álvares de Mendonça. Comunicando o seu fascínio pelo oceano como força telúrica, o narrador, consciente da poderosa imensidão, usa uma voz que alia o realismo de quem lhe conhece os segredos à sensibilidade de quem lhe sabe apreciar a beleza, mesmo numa tempestade.
Nos Açores (e até em Portugal inteiro) só existe um cenário onde um livro destes pode ter sido concebido: o canal Faial-Pico. E apenas por alguém que viveu anos atravessando aquele mágico espaço em dias de borrasca ou de nevoeiros cerrados, e em tardes de pôres-de-sol estonteantes ou em noites de luar e sonho.
A Humidade dos Dias afinal fora só o prenúncio de Navegações e Outras Errâncias. Aqui se revela toda esta folgada escrita
que estava latente, pronta para içar as velas e largar-se páginas fora, velejando à larga, com destreza, perícia e um ávido sentido do belo.
Onésimo Teotónio Almeida
Excerto
Caía uma chuva miudinha molha-tolos, dizem. O dia ainda não chegara, atrasara-se ao largo, no nevoeiro que embrulhava a ilha. Otília acordou finalmente, depois de passar a noite a revirar-se na cama como um barco à deriva numa cabeça de maré, irrequieta, sem rumo, atirada de um lado para o outro na escuridão do quarto, surdamente, amortizando aos poucos a ausência que só ela sente, em cada gin tónico que ficará por beber com ele, quando estiver sozinha sentada naquela mesa do canto do Peter. Foi ali que guardou os dias que não queria esquecer, olhando, desoladamente, para lá da ilha e do oceano como se a única solução fosse fugir dali para fora, para um lugar que talvez não exista, ou apenas exista enquanto lugar para onde se viaja, sem nunca chegar. Quem sabe? Dele ficou apenas uma última carícia a saber a quinino que desponta todas as noites naquela solidão
atlântica, sem depois nem quando. Ele desapareceu para sempre do sorriso de Otília, que tinha descolado num voo supersónico, naquela mesa do canto do Peter, navegando palavras que sabiam aos últimos dias de verão e a uma partida que ela não viu chegar.
Nunca saberá Otília por onde ele andou nem ao que lhe sabiam os dias. Antes. Mas isso o que importa? Ele está meio mundo longe e não volta. E como se não bastassem as saudades, chove.
Uma chuva que cai como se o mar e a terra se invertessem e Otília fosse o centro de gravidade daquele dia que ainda mal nascera no cansaço da insónia.
Nota de leitura