Música de anónimo
José Manuel Teixeira da Silva
Música de Anónimo reúne os poemas escritos pelo autor entre 2001 e 2009, poemas que foram ficando para trás em termos de publicação, mas em que se reconhece e encontra unidade. Neles se procura talvez alguma coisa que sobrevive entre o mais pleno e o mais escasso, faces apenas da mesma matéria do mundo – isto é, música e puro anonimato. No fascínio pelo sempre outro, nos trabalhos e nos dias, no diálogo com as vozes alheias.
Excerto
MULHER SENTADA A LER
Os pés soltos, o corpo leve
moldado ao mundo que nele se cria
procuram uma nova gravidade, outro repouso
A água reveste a sábia nadadora
a que se deixa fugir com íntimos vestidos
dispõe o seu herbário infinito
oferece o silêncio, fabulosas decisões
Desdobra as cortinas temporais
enquanto atravessa a flora resistente do lugar
e os mergulhos se tornam dança das algas
Sim, estás aí sentada a ler
Nota de leitura
[…] o fascínio pelo espaço ou, melhor, pelos lugares esteve sempre presente nos poetas. Por isso não nos deve espantar que um poeta dos nossos dias, José Manuel Teixeira da Silva, se refira num seu recente livro intitulado Música de Anónimo aos «extremos lugares». Este livro pode ser entendido, efectivamente, como um percurso por esses lugares extremos que podem ser uma casa onde se encontre a «primitiva luz», um espaço de leitura onde «todos os livros se esquecem» um quadro onde «o mundo é o primeiro esboço do mundo», um muro que é «uma cegueira inspirada pela luz».
Dentro deste contexto leia-se o início do poema deste livro que se intitula “O quarto de brinquedos”: «Os meninos seguem na ventania dos quartos / não sabem apenas brincar, como lhes pedem / Onde estamos ao acordar de coração no breu / que tempo, que vida, que caminho para a mãe? // De onde vem a luz que arromba as portas? / Como abrem para o escuro? O que fica no vazio?»
Sabemos, pela nota biográfica do autor, que Teixeira da Silva «escreve poesia, alguma prosa, faz fotografia». O desenvolvimento dos seus poemas decorre de flashes sucessivos, sobrepostos, os quais não raro correspondem a fragmentos verbais que se diria serem fotografias ou, melhor, cortes de fotografias que põem em questão o que de imitativo pode haver numa representação fotográfica. Daí que o modo como – e lembremos que Lessing desenvolveu o seu ponto de vista pondo em questão o princípio da imitação que faria da poesia uma «pintura falada» – vários poemas deste livro aludem a quadros, com explícita referência a Turner, Vermeer ou Pousão, e a composições musicais de Mozart, Mahler ou Messiaen.
Mas, para além das referências musicais ou pictóricas, o que prevalece é uma invenção que será, obviamente, a da própria linguagem. É isto o que se pode ver neste passo do poema “Catálogo de pássaros de O. Messiaen”: «exactamente setenta e sete pássaros diferentes / repartidos por sete livros de música / Não chega uma só vida para contar a plumagem / as películas esvoaçantes do breu real / ou os saltos coloridos de espessura entre galhos / Volteiam de transparência em transparência / trespassam o dia, bicam o nó da sombra.»
[Fernando Guimarães, JL, nº 1160, 18 a 31/03/2015]