Murmúrios com Vinho de Missa
Álamo Oliveira
Neste Murmúrios com Vinho de Missa, um padre e uma professora são a voz e os rostos do romance e a pedofilia entre os membros do clero é um dos seus temas. O que o torna um livro muito actual. Actualidade corroborada pelo mais que atravessa as suas páginas: o envelhecimento, o desejo, a educação, o tráfico de drogas, a alimentação saudável, o carácter fragmentário das relações humanas.
Estamos, pois, em presença de uma narrativa que, como toda a boa obra de arte, nos inquieta e que se afasta do julgamento primário e redutor da pedofilia. Aqui, já não entendida sob o prisma de uma falsa moralidade, mas pelo ponto de vista de duas figuras – uma masculina, outra feminina – que partilham uma visão transgressora da lei e que são adeptas do que se poderia designar de efebofilia.
Carlos Bessa, do Prefácio.
Excerto
Apetece-me cantar. Não o faço por respeito aos meus próprios ouvidos. Quando canto, guincho. Não se trata de anticanto, mas de tentar admitir o insuportável. Porém, apetece-me cantar. Estou fora do cinzento habitual e sinto-me embrulhada por um núcleo festivo de cores. Debruçada no parapeito da janela, vejo e ouço um ininteligível canto de pássaros. É quase Abril e a primavera fez-se anunciar com o perfume das flores do jacarandá que cresceu no passeio da rua. Aqui, o movimento dos carros é pouco, sempre que não seja hora de ponta. Moro nesta rua porque gosto de enfrentar o desconhecido e também porque o meu dinheiro não dá para procurar casa noutra zona da cidade. Aconselharam-me a não morar aqui. É uma área habitada maioritariamente por negros. Na verdade, trata-se de um bairro degradado, com casas velhas a clamar por restauro, sujo e malcheiroso, anunciador de gritos grafitados nas paredes sobre carências e exclusões, o que revela também que quem mora no bairro pode ser pobre, mas não é estúpido nem criminoso.
Nota de leitura