Mandrágora
Nicolau Maquiavel
(…) Jamais se viu peça tão irreligiosa, descrente e agnóstica, defensora de um pragmatismo alheio a qualquer crença, a-utópica, por assim dizer. Os apelos à “teologia” e ao bem público, à moral comum, mascaram os contornos reais dos procedimentos, justificam-nos legitimando-os pelos supostos princípios que contêm, como sucede com a tese do frade acerca de que o que peca é a “vontade”, o espírito e não o corpo.
Este microcosmo da Mandrágora é o retrato de um mundo contaminado pelo dinheiro, o credo, em todos os seus interstícios. Paradigma desse poder do poder de comprar é a cena de Frade Timóteo com uma “mulher rica” que lhe paga umas missas pela alma do seu defunto marido que, pelos vistos, a sodomizava. Nunca um padre foi tão negociante e contabilista, tão faminto de dinheiro. Mandrágora — a peça — que gozou do ambiente de liberdade que havia na Itália em que foi representada, nos anos vinte de 1500, será, uns anos depois, metida pela inquisição e pelas censuras de das épocas ulteriores, no índex. Será só no século XX e muito depois da guerra, a segunda, que encontrará, levada à cena, o reconhecimento do seu valor real e actualidade inultrapassada.
[Fernando Mora Ramos]
Excerto
Benévolos ouvintes, Deus vos guarde,
Esperemos que esta obra vos agrade.
Se em silêncio quereis continuar
Havemos ora aqui de vos contar
um novo caso na vossa terra nato.
Vede da nossa cena o aparato
Que desde agora se vos mostrará:
Esta cidade é a vossa Florença
Outra vez, Roma ou Pisa será.
Logo de tanto rir rebentará a pança.
(…)
Mas deixemos dizer mal a quem quiser,
E para não deixarmos adiantar a hora,
Ao nosso caso voltemos por agora
Que à má-língua não se deve atender
Nem a algum néscio estima conceder
Que nem perceba se está vivo ou morto.
Calímaco já vem saindo daquele lado
E traz com ele Siro, o seu criado,
Dirá ele ao que vem. Cada um esteja atento,
E não espere por ora outro argumento.
Nota de leitura