Kinderszenen
Alexandre Sarrazola
«Entrei na grande casa e caminhei por sobre as águas que pintavam os tectos de azul cobalto, animados de tritões, sereias e ouriços do mar. Pelos corredores davam às salas grumetes gibraltinos, corsários do Libano e cavaleiros malteses. O ponto de fuga apontado à escadaria do zimbório ferido nos flancos pela luz da foz e pelas sombras que vinham drapejar ali, tombadas do lado do castelo. Em cada sala frascos de linhaça e terebentina; restos de óleo em panos de linho tingidos de branco de zinco, sangue de boi e azul cerúleo. A sul a vista narcótica do estuário do Tejo, um pequeno Mediterrâneo a convocar o olvido das auríferas areias do fundo e da prata das conchas. Sobraram estes negativos sobre vidro e a maiêutica pulsão de lhes dar nomes almas e destinos: para os trazer de regresso à praia, iluminados da memória inteira do mundo.»
[Alexandre Sarrazola]
Excerto
Nada de medo: ginetes, toirões e lobos: esfolados das caudas à nuca entre o bramido de uma dor excruciante e o fino silvo do fio da navalha de enxertia afundada no derradeiro conforto do pêlo. O Tio Salvador trazia sempre as polainas pintadas do amarelo das azedas e do vermelho das papoilas e deixava um rasto de lama entre a porta da casa, as alcovas das sopeiras, a copa e os nossos quartos, antes de se deitar e esfolar, rente ao ouvido, pelas narinas, os sonhos da Tia Perpétua — e por isso o rangido da cama nos adiava o mergulho fundo no sono e, às vezes, a alagadiça chegada dos anjos da guarda.
[de “La Lys”]
Nota de leitura
«São sempre visões, lançadas sobre o mais incerto dos mapas, numa mistura de sonho e lembrança, fazendo o seu caminho através de uma linguagem de singular encanto. «Entre o tédio da imobilidade e a pulsão de fugir», a mão que escreve aquelas linhas parece compor texturas, assume certos poderes, afectando o tempo em elaboradas descrições que estripam paisagens, expõem detalhes à luz do espanto e criam ambientes de vibrante estranheza. Colagens de sensíveis impressões, percursos que geram uma fluência hipnótica. As brevíssimas narrativas reunidas em Kinderszenen vêm, depois daquelas que compunham o anterior álbum de Sarrazola, Neófitos (2014), confirmá-lo no restrito lote de discretos mas magistrais prosadores portugueses que, mesmo sem claras afinidades entre si – talvez até por isso, por essa natureza desencontrada de um tom geracional –, começam a perfilar-se como as vozes que exigirão uma atenção mais séria dos vindouros. Isto se não for demasiado optimista esperar que a crítica possa ainda reclamar uma posição no choque face à incessante campanha publicitária que cerca por todos os lados o campo literário. […].»
[Diogo Vaz Pinto, jornal i, 12 de Dezembro de 2015]