João de Melo. Entre a Memória e a Perda
Maria Graciete Besse
Na sua obra, já distinguida com numerosos prémios literários, João de Melo mobiliza um paciente trabalho da memória e revisita, com muita sensibilidade e mestria estilística, vivências geralmente relacionadas com o horizonte da infância, a emigração açoriana, a cruel experiência da guerra e a aprendizagem da estranheza, desafiando sempre o leitor para uma reflexão sobre a sociedade contemporânea em constante mutação. O presente ensaio analisa uma parte significativa da obra ficcional deste grande escritor e pretende mostrar como a presença recorrente de uma poética da perda apresenta vários rostos que, entre o trágico e o irónico, permitem definir uma consciência ética elaborada a partir de um olhar, por vezes
melancólico, capaz de interrogar o sentido mais profundo da existência. Nesta perspectiva, a escrita resiliente de João de Melo afirma-se sobretudo como uma lição de esperança e de crença no poder da literatura para repensar os conflitos humanos e, eventualmente, reparar o mundo.
Excerto
Coroado por numerosas recompensas e reconhecido, em 2016, com o prémio Vergílio Ferreira, atribuído pela Universidade de Évora ao conjunto da sua obra, João de Melo é, sem dúvida, um dos escritores portugueses que melhor interroga a essência enigmática do tempo e a obsessão das origens, fazendo também da literatura aquilo que o autor de Para Sempre designava como a incansável demanda da palavra primordial, sempre imperfeita (1).
Nascido em 1949 na ilha açoriana de São Miguel, concelho de Nordeste e freguesia de Achadinha, onde cresceu ao sabor dos sismos e dos ventos, João de Melo foi embalado pela voz misteriosa de uma avó que lhe contava histórias bíblicas, «entre o Génesis e o Livro do Apocalipse» (2), e cujos ecos se encontram disseminados na sua ficção. Com apenas onze anos, o futuro escritor deixou os Açores para prosseguir os estudos no continente, frequentando como aluno interno, entre 1960 e 1967, o Seminário dos Dominicanos, perto de Fátima, de onde foi expulso no fim da adolescência, «por ser ateu e politicamente subversivo» (3). Aos dezoito anos, publicou os seus primeiros contos no Diário Popular e no Diário de Lisboa, passando a viver em Lisboa com uma irmã, futura enfermeira. Aí teve de recomeçar todos os estudos, através de exames, visto lhe ter sido recusada equivalência oficial dos que adquirira no Seminário (não obstante serem os mesmos dos liceus, com os mesmos manuais e «livros únicos», e ainda acrescidos do Latim e da Música). Além de trabalhar e estudar, foi dando a conhecer a sua escrita em diversos periódicos lisboetas e açorianos. (…).
(1) Segundo Vergílio Ferreira, «a palavra é um impossível […]. Mas o trabalho do poeta é esse — fazer coincidir o indizível com o dizível, utilizando o estratagema de passar não bem pela palavra mas pelo enigma que a circunda, e se esqueceu, não pelo que ilumina mas pelo iluminar», in Vergílio Ferreira, Pensar, 2.ª ed., Lisboa, Bertrand, 1992, p.10.
(2) João de Melo, «A vertigem aos olhos de um gato», in Jornal de Letras, Lisboa, 16-3-
2016, p.36.
(3) Ver entrevista conduzida por Luís Ricardo Duarte, «João de Melo. Arqueologia da derrota», in Jornal de Letras, Lisboa, 3-2-2016, p.6.
Nota de leitura