Elogio da Descrença

António Vieira

Estes fragmentos exprimem, sucessivamente, a descrença na linguagem, no género Homo, nos deuses, nas essências, na liberdade e na história, e culminam no reconhecimento e na celebração de um Jogo do mundo como dinamismo de
fundo original. Provêm de notas escritas ao longo de duas décadas. Trata-se quase sempre de estilhaços de escrita, ecos eles próprios de estilhaços de pensamento. Um tal viveiro de anotações dispersas
obrigou à sua decifração, transcrição, ordenação e aclaramento, e o material por fim obtido, contendo breves momentos de ficção por entre elementos de reflexão, foi dividido em doze núcleos temáticos. Os capítulos resultantes, subdivididos eles
próprios em segmentos, articulam-se por forma a que um fio discursivo guie os blocos de texto, dando-lhes unidade e extraindo da sua sequência o projecto de um livro. A sucessão de interrogações, asserções e comentários encadeados configura uma maneira de olhar o mundo e de estar no mundo, guiada pela ideia da fenomenologia.
[António Vieira]

Excerto

I. LINGUAGEM

É certo que as palavras, os seus dédalos, a imensidão esgotante das suas possibilidades, por fim a sua traição, têm algo das areias movediças.
GEORGES BATAILLE

Há um carácter totalitário da linguagem, impetuoso e jucundo, que a acompanha desde o seu estado mais elementar e a leva a visar todos os seres em jogo. Esta tirania da palavra exerce-se sobre um fundo emocional de pensamento dialéctico, opondo as díades eu/não-eu, nós/eles, aqui/além, antes/depois, agora/outrora, e mais, e mais, e leva o sujeito falante a apropriar-se sem esforço da totalidade do mundo. Assim parte à conquista da Coisa-mundo, sem nada obter, é certo, da sua intimidade: não desvenda os segredos últimos, mas funda sobre a matéria uma instância dialéctica de poder.

Esta apropriação da totalidade dá-se de modo defectivo e fraudulento, porque as palavras não equivalem aos objectos, como bem se sabe: entre palavra e objecto denominado, entre linguagem e mundo, flutua uma membrana de indeterminação, de cuja substância se formam mitos, crenças e preconceitos, e à qual é confiada a conciliação contra natura entre a expressão verbal e a realidade das coisas.

Nota de leitura

Ficha Técnica

ISBN: 978-989-9007-72-7

Dimensões: 14x22cm

Nº páginas: 232

Ano: 2022, Abril

Edição: # 260

Colecção terceira margem # 006

Género: Ensaio

PVP: 17 €

Autor