Elogio da descrença
António Vieira
Segunda edição desta obra de António Vieira que venceu recentemente (ex-aequo com Fernando J.B. Martinho) o Prémio de Ensaio Jacinto do Prado Coelho 2023 (Companhia das Ilhas, 2022).
Declaração do Júri no que se refere ao ELOGIO DA DESCRENÇA:
«O júri destaca em Elogio da Descrença (Ed. Companhia das Ilhas) de António Vieira, o rigor intelectual de um exercício de pensamento puro, nascido de “estilhaços de escrita” acumulados ao longo de duas décadas e assente numa estrutura fragmentária de pendor aforístico (aqui e ali intercalada por breves passagens ficcionais). Pensador heterodoxo com uma ampla produção ensaística, António Vieira (n. 1941) apresenta nesta obra, poderosa e muitíssimo original, uma atitude de radical ceticismo, assumindo-a como o bisturi que permite um questionamento de categorias tão diversas como a linguagem, a memória, o livre arbítrio, a morte, a divindade, a história e o próprio género humano, sempre à luz de uma abordagem fenomenológica.»
Este Prémio Prémio de Ensaio Jacinto do Prado Coelho é atribuído pela Associação Portuguesa dos Críticos Literários com o apoio do Ministério da Cultura através da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas. Prémio relativo a obras publicadas em 2022.António Vieira nasceu em Lisboa, em 1941.Trabalhou entre a antropologia biológica, a antropologia fenomenológica e a literatura, raízes que fundamentam a escrita deste ensaio. Formulou um modelo evolucionista da origem da linguagem.
Publicou romances (“Doutor Fausto”, 2014), contos metafísicos (“Dissonâncias”, 1999, “Olhares de Orfeu”, 2013, “A Undécima Praga e outros Contos”, 2022) e ensaios (“Ensaio sobre o Termo da História”, 1994, “Improvisações sobre a Ideia de Deus”, 2005).No livro “O Perceber do Mundo, o Ser e o Saber” (2020), traçou as bases de uma teoria do conhecimento, em diálogo com textos de Merleau-Ponty. Em 2021, a Companhia das Ilhas publicou dele Viagem pelo Brasil [1999-2000]. Diário de um Escritor Português (com edição brasileira em 2023), em 2022 o referido Elogio da Descrença e em 2023 Entrevista.
«Estes fragmentos exprimem, sucessivamente, a descrença na linguagem, no género Homo, nos deuses, nas essências, na liberdade e na história, e culminam no reconhecimento e na celebração de um Jogo do mundo como dinamismo de
fundo original. Provêm de notas escritas ao longo de duas décadas. Trata-se quase sempre de estilhaços de escrita, ecos eles próprios de estilhaços de pensamento. Um tal viveiro de anotações dispersas
obrigou à sua decifração, transcrição, ordenação e aclaramento, e o material por fim obtido, contendo breves momentos de ficção por entre elementos de reflexão, foi dividido em doze núcleos temáticos. Os capítulos resultantes, subdivididos eles
próprios em segmentos, articulam-se por forma a que um fio discursivo guie os blocos de texto, dando-lhes unidade e extraindo da sua sequência o projecto de um livro. A sucessão de interrogações, asserções e comentários encadeados configura uma maneira de olhar o mundo e de estar no mundo, guiada pela ideia da fenomenologia.»
[António Vieira]
Excerto
I. LINGUAGEM
É certo que as palavras, os seus dédalos, a imensidão esgotante das suas possibilidades, por fim a sua traição, têm algo das areias movediças.
GEORGES BATAILLE
Há um carácter totalitário da linguagem, impetuoso e jucundo, que a acompanha desde o seu estado mais elementar e a leva a visar todos os seres em jogo. Esta tirania da palavra exerce-se sobre um fundo emocional de pensamento dialéctico, opondo as díades eu/não-eu, nós/eles, aqui/além, antes/depois, agora/outrora, e mais, e mais, e leva o sujeito falante a apropriar-se sem esforço da totalidade do mundo. Assim parte à conquista da Coisa-mundo, sem nada obter, é certo, da sua intimidade: não desvenda os segredos últimos, mas funda sobre a matéria uma instância dialéctica de poder.
Esta apropriação da totalidade dá-se de modo defectivo e fraudulento, porque as palavras não equivalem aos objectos, como bem se sabe: entre palavra e objecto denominado, entre linguagem e mundo, flutua uma membrana de indeterminação, de cuja substância se formam mitos, crenças e preconceitos, e à qual é confiada a conciliação contra natura entre a expressão verbal e a realidade das coisas.
Nota de leitura