Dramas de Companhia
André Domingues
As trágicas encenações da existência. Um homem que vive prisioneiro dentro da consciência de outro. A angústia e a sua inata falta de fotogenia. Santas meramente performativas. Reis sem realidade aparente. Ficções que se movem entre o conto curto, a prosa poética, o apontamento humorístico, o diálogo metaficcional e a revisitação paródica de temas eternos. Cada uma é terra de todos e de ninguém. Visite-as sobretudo como um turista. Mas, se for caso disso, escolha uma e deixe-se ficar lá a viver.
Excerto
NOTAS DE UM SUICIDA
Vivo no vigésimo nono andar da consciência. Sou 100% século XXI. O medo é minha dama holográfica de companhia. Nada, nem a mais mínima acção, tem um enredo linear. As artérias do conhecimento estão entupidas. A menina que passeia o seu cãozinho pelo parque manipula conteúdo emocional de alta voltagem. Que posso eu? O meu nome não é sereno. Chamai-me o que vos aprouver. O gratificante final do dia dirige-se a grande velocidade contra mim.
O pior foi quando comecei a visualizar o tempo e a desmontar os dogmas da extinção. O coração era feito de lírica.
A noite passada sonhei com Carolee Schneemann. Tenho feito da minha vida uma performance recorrente. Um rito minimalista. Uma soirée dominical. O vento sopra-me instruções criminais. Não me deixo apiedar pela morte da presença. Mas a espontaneidade fugiu. É preciso pensar: abrir a janela. É preciso pensar: debruçar da janela.
É preciso pensar: atirar-me e cair.
Nota de leitura
Um homem acorda todos os dias numa cidade diferente daquela em que adormeceu, fenómeno inexplicável de migração involuntária que degenera, em página e meia, numa espiral geográfica que o leva das capitais do mundo a um atol da Micronésia, acabando com uma descida ao inferno em certa cratera do Turquemenistão. A estranheza, nas micro-narrativas de André Domingues, nasce quase sempre de uma desconformidade: pessoas que vivem no século errado, ou no corpo errado, ou na história errada.
JOSÉ MÁRIO SILVA | EXPRESSO /REVISTA | 8. 7. 2016