Versão portuguesa de Maria João Marques

Entra-se no poema (e no livro) como se entra na música: através das sugestões e imagens que um som é capaz de suscitar e a partir da transfiguração do concreto «observado». E se a música não constitui a única expressão artística que motiva a escrita de Michael Garcia Spring (também a pintura), a verdade é que a sua poesia assenta muito numa notação «realista» (não raro surrealizante) que não se esgota em si mesma: ela convoca os pequenos gestos e objectos de um quotidiano próximo ou imediato capaz de reenviar para um outro plano, o da memória e da emoção, mas uma emoção controlada e discreta. Tudo isso conseguido graças a uma poesia depurada e avessa a grandes expansões discursivas, que encontrou na atenção e na sobriedade o seu modo próprio de ser e dizer.

(Urbano Bettencourt)

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Excerto

dentro do som

desta vez tomo o lugar à janela

as costas contra a parede de madeira escura

asas rasgadas de luz sulcam a minha mão

enquanto sorvo o sangue negro

dos grãos de café do Brasil

hoje não observo caras abstractas

ou gestos em conversa

prefiro seguir o ulmeiro

erguendo-se do passeio

como um solo de Lester Young

pairando nos altifalantes dos cafés

enevoando o ruído das vozes

e o estrépito da louça

sento-me a sonhar

dentro do som

de um saxofone

e os ramos do ulmeiro

inundam o céu

Nota de leitura