Da vidas das marionetas. Ensaios sobre os Bonecos de Santo Aleixo
José Alberto Ferreira
Trata-se de um trabalho académico de grande relevância para os estudos de teatro, numa área ainda mal apetrechada em bibliografia especializada como é o caso do teatro de marionetas antigas. Numa abordagem epistemológica aberta a diversos cruzamentos com outras temáticas, esta obra reúne textos dispersos em várias publicações anteriores que, re-escritos e aqui organizados num só volume em torno de três eixos temáticos estruturantes, dão aos saberes que encerram um sentido teórico e metodológico mais amplo e mais profundo.
Os textos têm como ponto de partida e enfoque principal o espólio do teatro dos Bonecos de Santo Aleixo (BSA), conservado e mantido em actividade por actores do Centro Dramático de Évora (CENDREV) que desde meados dos anos 1980 reproduzem nos palcos nacionais e internacionais o repertório de peças, quadras e músicas, transmitido pelo seu último detentor, o Mestre Talhinhas, a outros protagonistas, para a sua salvaguarda. [Christine Zurbach, Universidade de Évora, do Prefácio]
Excerto
Vir ‘à baila’ significa, em português, tornar-se tema de conversa, assunto. O ‘balhar’ (bailar) é, na estrutura dramatúrgica do repertório dos Bonecos de Santo Aleixo, um elemento essencial. Por ele se encontram quer as ligações com as tradições do espectáculo popular de marionetas, quer as dos contextos festivos onde aqueles decorriam, com a música e a dança como elemento nuclear da festividade popular. A leitura que aqui proponho desses ‘balhos’ integra-os nas tradições das danças faladas do repertório popular e tradicional português, permitindo estabelecer ligações entre os ‘balhos’ e tradições como a do baile mandado, parte de uma série mais ampla em que dança, mandador e espectadores participavam activamente, situando o repertório coreográfico dos Bonecos entre o horizonte mítico do labirinto e as práticas de entretenimento populares.
O repertório dos Bonecos de Santo Aleixo tem uma forte componente musical e coreográfica, cuja interpretação é mais frequentemente de tipo textual do que coregráfica. Trata-se, em qualquer caso, de bailes que evocam memórias de bailes como práticas conviviais comunitárias, inscrevendo-se como que em duplicado no ambiente festivo dos bailes que tradicionalmente acolhiam os Bonecos. Mas também se verificam, nessa contiguidade, homologias de outra ordem: entre as danças dos bonecos e as danças tradicionais há apropriações de formas que estes corpos sem órgãos dançam com alegria e ritmo, assim como há contaminações entre casos e letras, entre letras e danças, entre danças e bonecos.
Em busca das muitas faces destas homologias, encontrei na figura do labirinto como ponto mítico originário de toda a dança os fios que ordenam a natureza coreográfica dos Bonecos. Fios de Ariadne, está bem de ver, fios que trazem ao mundo a ordem que nele espelham, que conservam memórias nos fios de dança e de discursos que as atravessam. Divido o capítulo em duas partes. Primeiro procuro estabelecer o modelo do labirinto para depois analisar o repertório dos Bonecos e os desdobramentos coreográficos que, com o labirinto em fundo, lhe procuram sentidos, formas e diálogos no tecido cultural.
Nota de leitura