Corsário das ilhas / O Retrato do Semeador
Vitorino Nemésio
(…) Ressalta destas páginas o desagrado perante a mudança acelerada que varreu o Portugal do pós-guerra. Num misto de saudosismo e confiança, o cronista retrata figuras exemplares no combate à destruição «das colheitas» recentes e, neste gesto de desenhar os outros, retrata-se a si próprio como integrando a hoste de semeadores de grãos limpos. A exemplo dos vultos que inspiram a sua escrita em cada um dos volumes — Luís da Silva Ribeiro, «alma e consciência da nossa ilha e dos Açores»; Francisco da Rocha de Sousa, «Vigário de Santa Cruz da Vila da Praia da Vitória» —, também ele se esforçará por não deixar morrer Deus e a «alma» dos Açores; salvá-los-á — percebe-se — pela palavra.
A heterogeneidade de estilos identificada no Corsário é vislumbrada no Semeador. À semelhança dos corsos, onde foi injetada uma dose de criatividade literária através do alter-ego de Mateus Queimado, também os retratos incluem passagens sobre a poesia, porque «religião e poesia são sentidas, embora a graus diversos, como esferas da espiritualidade».
E é deste modo que, no seu conjunto, o Corsário das Ilhas e O Retrato do Semeador nos apresentam duas prioridades no universo intelectual de Nemésio, em meados do século xx: a cultura enquanto fator de identidade pessoal (a «alma» dos Açores reencontrada por via da viagem, no tempo e no espaço) e a religião enquanto porta para um humanismo indelevelmente cristão. Enquadrados no seu tempo, revelam um olhar que idealiza assimetrias sociais, que o autor comenta ancorado numa sólida erudição, que resiste à descaracterização identitária, que aceita a tradição rural e religiosa do país e das ilhas, e que crê no poder redentor da palavra contra os perigos éticos e estéticos vindos de outras paragens. Claramente datados, mesmo quando a data não está presente, são o testemunho de um tempo de que poucos vestígios sobreviveram, além dos nomes, das obras, dos temas e dos anseios universais. (…)
(Leonor Sampaio da Silva, da “Nota Editorial”)
Nas Livrarias: terceira semana de Junho de 2024
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Excerto
Atiro-me de alma e coração a este roteiro tanto tempo sonhado e só agora empreendido. É uma viagem banal, dez vezes feita e desfeita nos seus dois rumos monótonos, precedida das mesmas expectativas e seguida de iguais recordações. As recordações desta etapa escapam-se por enquanto (claro!). Mas as expectativas…
Ah! Essas aqui estão cheias, inteiras à entrada da realidade que as desfaz neutralmente, pelo simples facto de que, transpondo-as, lhes destrói a espera, a esperança, o crédito, — enfim, tudo o que as faz adiantadamente substância de tempo. Bem ou mal, assim ou assado, o que me vai suceder deixou de tergiversar. Só esperando me era possível aventurar num ou noutro sentido, e logo corrigir a aventura ensaiando-a de modo oposto. Agora, entrando no paquete, penetrei no domínio turístico dos factos consumados. Já não revogo nada; nada deixo em suspenso.
Nem sequer já me balanço na esquisita excitação que precedeu esta largada: «Vou! Não vou?» Umas vezes: «Vou!» Outras: «Não!» Maldita condição pendular da vontade! Perpétua indeterminação do disponível e do gratuito… (…)
Nota de leitura