A presente colectânea de contos e respectivo estudo destinam-se principalmente a valorizar o património cultural açoriano, em particular o conto açoriano, contribuindo para conservar esse património e, ao mesmo tempo, divulgar a literatura dos Açores, promovendo o interesse pela leitura de obras açorianas. O Conto Literário de Temática Açoriana: Estudo e Antologia começa por apresentar um estudo introdutório, com a explicitação de conceitos teóricos de convocação indispensável, com um resumo das teorias do conto em geral e com uma breve descrição do percurso estético-literário do conto português. Integra ainda esta parte uma contextualização histórico-literária do conto açoriano, desde o século XIX até aos nossos dias, com referência aos principais contistas e aos momentos mais marcantes dessa evolução. Numa amostragem que teve de ser necessariamente confinada para que o volume não excedesse as convenientes proporções, são apresentados, na segunda parte do livro, em reprodução integral, contos escolhidos de trinta autores que figuram entre os mais representativos da literatura açoriana, entre o final do século XIX e primeiras décadas do século XXI. Os contos são precedidos de notas biobibliográficas sobre os autores representados, que incluem um olhar sobre o conto seleccionado.

Excerto

– Cher ami – disse Madame Vincent, ajeitando contra o rosto o gato persa que tinha ao colo rien n’est simple. Veja o Abdul: um animal de excepção, a suavidade tão branca, tão neutra do pêlo, longo e macio, a tão correcta implantação das orelhas, distanciadas o suficiente para que deixem de parecer um absurdo apêndice esquecido no alto da cabeça, a calma profundidade do olhar azul, tão demorada e ostensivamente azul. Dir-se-ia que é uma criatura perfeita, tão admiravelmente concebida, tão impecavelmente concretizada, que a sua simples existência reconcilia e perdoa todas as imperfeições dos outros animais da sua espécie. Julga que exagero? Mas observe-o bem: não há nele qualquer traço da agressiva impaciência do mikai japonês, chamam-lhes welcoming cats, mas é uma ridícula ironia. Alguma vez viu um Manx listrado? Não? Ah, meu amigo, são animais assustados com a sua própria condição, tão pouco afectuosos, tão de mal com a sua própria pele, tão pouco à vontade no contacto com o mundo. Não, Abdul é diferente. Pertence a uma raça de seres sociáveis, naturalmente sociáveis, porque não sustentam qualquer espécie de rivalidade com os outros. São tão luminosamente superiores na sua intacta perfeição…

[de “Sobre o Vulcão”, de António Mega Ferreira]

Nota de leitura

Foi publicado já no fim do ano que passou, e é definitivamente um dos livros que vai marcar o ano literário, a sua influência será duradoura entre todos os que se interessam pela literatura e cultura açorianas no contexto da nossa modernidade. Como todas as colectâneas deste género, O Conto Literário De Temática Açoriana, seleccionado, organizado e contextualizado histórica e teoricamente num desenvolvido estudo por Mónica Serpa Cabral, pode e deve aspirar a um estatuto de “cânone”, mesmo que provisório e discutível pela presença de uns e ausência de outros, servindo de ponto de partida para outras propostas vindas de estudiosos da mesma área. Que é um contributo imenso para o esclarecimento e divulgação do melhor, ou de uma amostra parcial do melhor, que a partir do fim do século XIX se escreve entre nós, também creio ser questão pacífica.

[Vamberto Freitas, texto publicado no “BorderCrossings” do jornal Açoriano Oriental de 22 de Janeiro de 2016]